As muitas dificuldades de Guterres. E o apoio que a Europa lhe prometeu
À chegada ao Parlamento Europeu, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, tinha à sua espera Antonio Tajani, presidente da instituição. O busto de Louise Weiss, decana dos deputados europeus, e as bandeiras das Nações Unidas e da União Europeia enquadraram o breve cumprimento protocolar entre os dois e daí seguiram para um intenso programa de umas cinco horas e meia, com um almoço de trabalho pelo meio.
No final da visita, interpelado pelos jornalistas portugueses sobre se encontrou dificuldades que não esperava, desde que assumiu o cargo de secretário-geral das Nações Unidas a 1 de janeiro, o desabafo foi acompanhado com um sorriso franco: "Não sei se encontrei dificuldades que não esperava, mas lá que há muitas dificuldades há."
Dessas dificuldades deu conta António Guterres, primeiro num discurso aos deputados numa sessão solene, depois numa conferência de imprensa conjunta com Antonio Tajani e também numa reunião com os presidentes dos grupos políticos representados no Parlamento Europeu. Em todos os momentos, o secretário-geral bateu numa mesma tecla, de quem precisa da Europa. "É fundamental ter uma União Europeia unida e forte", repetiu-se nos corredores e nas salas por onde foi falando. A União Europeia deve "apoiar as Nações Unidas, para que seja eficaz a responder aos dramas que enfrentamos".
Aos deputados, falou como um deles: "Caros colegas", disse, recordando que também ele foi parlamentar durante 23 anos em Portugal. Naquele que foi o seu primeiro discurso no Parlamento Europeu enquanto responsável máximo das Nações Unidas, o português defendeu que "as pessoas têm o direito a escolher ficar nos seus países e têm de ter essa possibilidade", para logo apelar a que a Europa dê "mais oportunidades aos migrantes legais".
O secretário-geral da ONU apontou o dedo a quem viola os direitos humanos dos refugiados e dos migrantes. "Para ser muito franco: se queremos ser campeões do mundo em direitos humanos temos de ser credíveis e a autoridade moral de vários países tem sido posta em causa pelo tratamento dos refugiados."
Na véspera, o programa de recolocação foi objeto de debate e a Comissão Europeia divulgou que três Estados (Hungria, Polónia e Áustria) não acolheram qualquer refugiado até agora, apontando a aplicação de eventuais sanções a quem não cumprir as metas definidas pelo programa.
Aos jornalistas, António Guterres recusou-se a fazer avaliações concretas à metodologia seguida pela União e ao comportamento dos estados, mas nas meias palavras deixou reparos aos que têm furado o consenso humanitário: "Esse problema podia ter sido resolvido com plena solidariedade" entre os países europeus, através do seu programa de recolocação.
Para o secretário-geral da ONU, o "problema" do "milhão de pessoas" que "chegou às costas da Europa" podia ter sido resolvido a jusante. "Teria sido muito importante se a comunidade internacional tivesse dado uma resposta atempada aos conflitos", que têm levado à deslocação de milhões de pessoas, ajudando a "estabelecer políticas para desenvolvimento".
Em dezembro passado, Guterres defendeu, então na Assembleia da República, que Portugal estava "particularmente bem posicionado para se colocar no centro da mobilização" da aliança internacional que restabeleça o regime de proteção de refugiados. "Porque Portugal é um país exemplar em matéria de resposta dos direitos humanos ao nível do Estado e da sociedade", disse.
Agora é urgente uma "maior capacidade de coordenação dos esforços para combater o tráfico e o contrabando de seres humanos", que ontem classificou como "o mais hediondo dos crimes", o secretário-geral da ONU defendeu que "a agenda dos direitos humanos está a perder terreno para a soberania nacional". E registou que esta é "muitas vezes invocada para justificar a falta de capacidade da comunidade internacional para lidar com os desafios" que se lhe colocam e com "as violações [dos direitos humanos] que existem em várias partes do mundo".
Pedindo "uma coligação mais forte para promover os direitos humanos", Guterres notou que é importante ter uma "visão abrangente dos direitos humanos", que inclua os direitos civis, políticos, mas também sociais e económicos. "Os direitos humanos são um valor por si só", insistiu.
Na conferência de imprensa, António Guterres deixaria uma profissão de fé nos valores do iluminismo e da razão, perante os aplausos dos deputados. Mas deixou um alerta: "Seria ingénuo pensar que a diversidade será um êxito automático. Precisamos de coesão social e inclusão."
"Podia vir aqui dizer que o mundo nunca esteve melhor, mas enfrentamos um número de desafios sem precedentes", disse Guterres aos deputados. A seu lado, Antonio Tajani mostrou todo o empenho do Parlamento Europeu: "A sua agenda também é a nossa. Pode contar com o apoio deste Parlamento."
Sem grandes possibilidades de fugir ao protocolo parlamentar, só no final da conferência de imprensa (rematada com um sonoro "muito obrigado"), o português se permitiu sair um pouco das regras e dos percursos pelos corredores do edifício Louise Weiss, ao deixar-se fotografar com jovens estagiários portugueses do Parlamento Europeu. Mas sem selfies.
* EM ESTRASBURGO
O jornalista viaja a convite do Parlamento Europeu