As memórias são como as cerejas

"A cereja no topo do bolo" é o mesmo que dizer o remate perfeito. Para o bem ou para o mal.
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Talvez por não ser um produto que consuma com frequência, cada vez que como cerejas sou transportado para a infância e para Tomar. Era na cidade templária que os meus avós maternos viviam e onde ia com regularidade nas férias. Nesses anos 1980 a autoestrada acabava em Aveiras para quem vinha de Lisboa e demorava-se quase três horas a fazer um percurso que hoje se faz numa hora e um quarto. Talvez por isso também tudo tinha um outro sabor. Até o das cerejas.

A cidade de Tomar fica num vale, no do rio Nabão, concentrando muito calor nos dias mais quentes. Em linguagem popular, Tomar é um autêntico forno. E protege-se disso com os vários parques e jardins que tem e, claro, no rio com os seus açudes e com a famosa roda. Mas não era nesses locais mais idílicos que tenho memória de comer cerejas. Não sei onde a minha avó as comprava, mas suponho que era no mercado, que ainda existe, ali junto ao rio, mas já na parte nova da cidade. A casa dos meus avós era muito perto, numa avenida com prédios dos anos 1940 semelhantes aos das Avenidas Novas de Lisboa. Era na varanda do apartamento dos meus avós, no segundo andar, que muitas vezes comia as cerejas da minha infância. Daí via o grande limoeiro plantado pelo meu avô lá em baixo no terreno das traseiras. E via o cemitério e o telhado de uma das mais belas igrejas portuguesas, a de Santa Maria do Olival.

E o calor, sempre o calor de Tomar, enquanto as cerejas me refrescavam temporariamente, ainda com as gotas da água que as lavou instantes antes. Lembro-me do meu avô sentado nessa varanda a contemplar não sei bem o quê e eu ao colo dele a comer cerejas. Esse era certamente um momento de felicidade para o meu avô, ter ali o neto com ele. E meu, ainda que não entendesse quão feliz e privilegiado eu era por ter ainda avós. É também por isto que eu gosto de cerejas, por me fazerem transportar a todas estas memórias.

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