Há dias, breve e fugaz notícia deu conta da demolição das duas chaminés da antiga Fábrica António Alves, em Torres Novas, no âmbito das obras de construção de um novo supermercado Intermarché na cidade. O ataque às torres gémeas, feito à revelia da autarquia, seria qualificado pelo presidente da edilidade como "inesperada e socialmente chocante", pois as duas chaminés faziam parte da paisagem e da memória da terra, "simbolizavam historicamente a existência, naquele espaço, da antiga Fábrica António Alves". Ficaram os torrejanos chocados, indignados, com aquele traiçoeiro gesto, que em poucos minutos fez desaparecer do horizonte as torres do "Alves das lãs", um crime do qual, como sempre, ninguém sairá beliscado ou sequer responsabilizado, pois assim se cuida ou descuida do nosso património histórico, cultural e artístico. Neste caso, para mais, há a agravante de, para construir naquela zona - a Cancela do Leão -, ter sido necessário alterar o respectivo plano de pormenor, processo marcado por polémica, no âmbito do qual a edilidade isentou o Intermarché de taxas municipais no valor de 94 mil euros. Em troca dessa vantagem camarária, o dono da obra não teve melhor ideia do que, sem dar mínimo cavaco a quem tanto o beneficiou, arrasar um marco da rica memória industrial da cidade de Torres Novas..Infelizmente, lamentavelmente, não é caso único ou isolado, longe disso. Basta passarmos os olhos por um livro acabado de sair, Edifícios Abandonados em Portugal, de Ricardo Raimundo (ed. Manuscrito), ou vermos as fantasmagóricas fotografias de Gastão de Brito e Silva e do seu projecto Ruin"Arte, para termos uma pálida noção da degradação incrível, inconcebível, em que se encontra o edificado nacional. Gastam-se milhões e milhões no efémero "digital", nas quimeras dos "unicórnios" e em palermices congéneres, enquanto tombam em ruína velhos castelos, palácios belos, casas antigas, lojas com história, lugares dignos de afecto e memória, que assim se perdem para todo o sempre, numa miserável espiral de incultura e barbárie que tem sido a nossa sina desde há décadas, desde há séculos..Torres Novas, caso não saibam, foi conquistada aos mouros em 1148, por Dom Afonso Henriques e teve na Idade Média uma atribulada história de destruições e guerras. Foi de lá que surgiu, dizem, o culto a Nossa Senhora do Ó, como nos explica Jean-Yves Loude em Le chémin des vierges enceintes. Une autre voie vers Compostelle, um relato apaixonante da viagem que aquele escritor francês fez por Portugal, na companhia da fotógrafa Viviane Liévre, em busca das paradoxais imagens de uma virgem grávida, de proeminente ventre, que constituem um dos traços mais originais e curiosos da tradição lusitana da fé. A obra, dada à estampa há um par de meses pela sapiente editora parisiense Chandeigne (obrigado, Anne Lima), bem mereceria ser traduzida para português, tantas e tão belas são as Senhoras do Ó que se atravessam pelos caminhos de Santiago. Há-as em madeira policromada, como a de Santa Maria de Lamas, de finais do século XIII, há-as em pedra, também policromada, como a de Montemor-o-Velho, do século XIV, da Igreja de São Pedro de Balsemão, do mesmo século, da Catedral de Évora, século XV, do Museu do Grilo, no Porto, séculos XIV-XV, ou na Catedral da Invicta, do século XVIII, entre muitas outras. A Virgem do Ó é aliás padroeira de 24 freguesias portuguesas, a maioria das quais no Norte do país: Águas Santas, Aguim, Ançã, Aveleda, Barcouço, Cadima, Carvoeira, Corvite, Covelo, Duas Igrejas, Estela, Freixo da Serra, Guia, Gulpilhares, Vilar, Lordelo, Mire de Tibães, Nogueira, Olaia, Paião, Reveles, Alcanadas, Valada do Ribatejo, Rio de Fornos, Carvalhal de Cheleiros, Alvarelhos, Sobral da Adiça e Sandim..Em Torres Novas, onde até existe a Igreja Paroquial de Nossa Senhora do Ó, Jean-Yves Loude descobriu duas virgens, ambas grávidas: uma, emprestada pelo Museu Nacional de Arte Antiga, é quase em tamanho natural, tem mais de um metro de altura, e foi esculpida entre 1340 e 1350; a outra, pequena de 70 cm, surpreende pelo rosto afogueado, com rubicundas maçãs. Se o olhar da Virgem da Expectação, vinda de Lisboa, é compassivo, resignado, o da Senhora de Torres Novas mostra-se puríssimo e ausente, angelical e celeste. Ambas têm uma mão colocada no ventre, a pose típica das grávidas, que amparam e protegem os seus filhos mesmo antes de eles nascerem. A Virgem de Lisboa, digamos assim, resultou de uma doação dos herdeiros do comandante Ernesto Vilhena, dono e senhor de uma vasta colecção de imagens de Nossa Senhora, muitas das quais Senhoras do Ó (cf. o catálogo Imagens da Virgem da Colecção Vilhena, séculos XIV-XV-XVI, Câmara Municipal de Lisboa, 1971) e quer ela, quer a de Torres Novas, são atribuídas a Mestre Pero, ou Pêro, escultor de origem aragonesa que teve oficina em Coimbra e a quem se devem obras magníficas, todas ou quase todas lavradas em calcário brando de Ançã. Entre elas, o Cavaleiro Medieval (ou Domingos Joanes como Cavaleiro), pequena jóia escultórica hoje exibida no Museu Machado de Castro, em Coimbra, tida pelos especialistas como a mais notável representação de um guerreiro medieval do gótico português..Durante anos, disparatadamente, julguei que o "ó" das virgens expectantes evocava a forma redonda e grávida dos seus ventres, mas, segundo parece, tudo se deve à interjeição Ó (ou Oh!), recitada no início das sete antífonas da liturgia de vésperas durante o Advento, também chamadas Antífonas do Ó. Foram compostas, imagine-se, entre o século VII e o século VIII e são cantadas de 17 a 23 de Dezembro, começando todas por um Ó sonoro: Ó Sabedoria (17 de Dezembro), Ó Adonai (18 de Dezembro), Ó Raiz de Jessé (19 de Dezembro), Ó Chave de David (20 de Dezembro), Ó Oriente (21 de Dezembro), Ó Rei das Nações (22 de Dezembro), Ó Emanuel (23 de Dezembro)..Trata-se, pois, de uma tradição antiquíssima, que remonta ao Concílio de Toledo, do ano 656, em que se decidiu transferir a festa da Anunciação para dia 18 de Dezembro. Não muito depois, Santo Ildefonso determinou que a Anunciação fosse celebrada com o título "Expectação do Parto da Beatíssima Virgem Maria", cabendo-lhe ainda a glória de ter escrito um célebre e decisivo tratado contra os hereges que negavam a virgindade da Maria e de ter tido, entre muitas outras, a visão de Nossa Senhora rodeada de virgens..Coube a Torres Novas, cidade do Médio Tejo, acolher esta tradição milenar, ser a pioneira da difusão da Senhora do Ó em terras de Portugal, devoção que se prolonga na arte popular dos nossos dias, surgindo nos barros de José Franco, nos bonecos de Estremoz, no figurado de Barcelos, entre outros (o recente encerramento da loja Santos Ofícios, em Lisboa, nascida do extraordinário trabalho de pesquisa do saudoso Homero Cardoso e de Luísa Cruz, constituiu mais um crime de lesa-cultura, mas poucos o lamentaram)..O culto à Virgem do Ó tinha lugar perante uma imagem já conhecida no tempo de Afonso Henriques, a Nossa Senhora de Almonda, assim chamada pela proximidade ao rio com o mesmo nome. E realizava-se na Igreja Matriz de Santa Maria do Castelo, templo medieval, antiquíssimo, edificado ou reedificado em 1212. Perguntais, e bem, o que aconteceu a essa igreja. E a resposta, cortante e trágica, é que... foi demolida em 1973. Repete-se: em Torres Novas, no ano de 1973, foi demolida uma igreja da Idade Média, velha de muitos séculos, a fons et origo da devoção da Senhora do Ó no nosso país. Porquê e para quê se arrasou um monumento tão histórico e tão simbólico, tão antigo, é algo que desafia o nosso senso e a nossa sensibilidade, mas que talvez tenha resposta numa só e triste palavra: Portugal..À primeira vista, parece estranho e bizarro que a Igreja tenha proclamado a concepção virginal de Jesus e, ao mesmo tempo, haja autorizado, e até promovido, uma representação tão carnal e tão natural de Maria, grávida e expectante como qualquer outra mulher e mãe. Essa naturalização, digamos assim, ou essa humanização plena, se preferirmos, chega ao seu extremo nas imagens da Virgem do Leite, esculpidas ou pintadas, em que uma Maria de fartos e fecundos seios alimenta o divino recém-nascido, muitas vezes figurado como um bebé obeso, voraz e sôfrego. A perplexidade adensa-se se tivermos presente que outros tipos de representação, como a da Virgem deitada, repousando após os trabalhos e as dores do parto, foram paulatinamente desaparecendo em finais do século XIV, diz-se que por acção de Santa Brígida, nome canónico de Birgitta Birgersdotter, padroeira da Suécia, uma das padroeiras da Europa, mística muito dada a visões, aparições, sonhos com Cristo. Numa dessas visões, tida pouco antes de falecer, Brígida afiançou ter visto a Cena da Natividade, com o Menino Jesus deitado nuns panos, no chão, mas não embrulhado neles, emitindo uma luz potente, enquanto a Virgem, por sinal loira, surgia ajoelhada em adoração, prostrando-se diante do recém-nascido, juntamente com José. Ou seja, em vez de uma mulher reclinada, muitas vezes com a parteira Salomé ao lado, a Virgem passou a ser figurada de joelhos, numa cenarização que acentuou o transcendente da Cena de Natal, em detrimento da dimensão física e corporal da maternidade de Maria..Em contraste, essa dimensão carnal é intensamente realçada nas Senhoras do Ó, numa linha em que a Virgem é trazida à terra e a este mundo, e tratada, abordada e representada como uma jovem mãe, simplesmente Maria, como sucede, entre outros exemplos, com a pintura Natividade, que Paula Rego pintou em 2002 para a Capela do Palácio de Belém, e onde Nossa Senhora, amparada por um anjo, se encontra pujantemente grávida, de pernas abertas e com o rosto grave e fechado. Uma das mãos ampara o ventre, tal como nas virgens da Expectação, e ao vê-la quase somos levados a concordar com Emannuel Carrère quando escreve, no seu livro O Reino, que não acredita na Santa Virgem, mas jamais duvida da Mãe de Jesus..Para mais, ao que parece, a virgindade física de Maria não é incontroversa à luz das próprias Escrituras. Em Natal, Verdade, Lenda, Mito (Instituto Açoriano de Cultura, 2012), que Frei Bento Domingues considera, e bem, a mais completa e informada exposição sobre a Natividade da pena de um autor português, o ex-sacerdote e teólogo A. Cunha de Oliveira, falecido em 2018, refere dados espantosos, como o facto de no judaísmo não existir qualquer evidência da concepção virginal de Jesus, afirmando ainda que, no mundo cristão, só uma deficiente leitura dos textos permite sustentar a ideia da virgindade perpétua de Maria, antes, durante e após o parto (ante partum, in partu et post partum), a qual só terá sido expressa num documento papal de 1555, ou seja, numa fase já muito adiantada da vida da Igreja..Segundo ele, a única palavra que, na Bíblia Hebraica, corresponde à nossa noção e definição de "virgem" (mulher intacta no seu hímen) é betulah, mas, no original hebraico das Escrituras, a palavra usada para descrever Maria é "almah, uma jovem mulher que pode ou não ser fisicamente virgem. Simplesmente, no século II, os judeus alexandrinos, ao verterem para grego o texto hebraico de Isaías 7:14, traduziram "almah para parthénos, em vez de neanis, que era o termo grego mais adequado. E como parthénos significava mulher fisicamente virgem, e como o texto de Isaías é considerado messiânico, bastou um passo para se afirmar, por todos os séculos, a virgindade de Maria..Não é esta, obviamente, a perspectiva canónica da Igreja, nem tenho conhecimentos para saber se a tese de Cunha de Oliveira estará certa, ou não. Mais interessante do que discutir o tema, sobre o qual jamais se chegará a uma conclusão definitiva, já que é matéria de fé, não de razão, será termos presente que a natureza física e corpórea de Deus - o Deus da Bíblia, note-se, não o de outras religiões - foi assumida desde as origens do credo monoteísta. Num livro recente e muito aclamado, saído o ano passado, com o título God. An Anatomy (Picador, 2021), Francesca Stavrakopoulou, especialista em história bíblica e religiões antigas da Universidade de Exeter, percorre as diferentes partes do corpo de Deus - os pés e as pernas, os genitais, o torso, os braços e as mãos, a cabeça -, mostrando que todas elas, sem excepção, tiveram o seu lugar na tradição da fé. Com o passar dos anos, dos séculos, dos milénios, tendemos a esquecer-nos dessa dimensão física e corporal do divino, que era evidente, por exemplo, no Baptistério dos Arianos, em Ravena, que se pensa ter sido construído por Teodorico, no século XV, e onde um mosaico nos revela Jesus a ser baptizado, sem barba e completamente desnudado. O sexo e a sexualidade de Cristo, de resto, estiveram bem presentes no Renascimento italiano, sendo depois ocultados pela Contra-Reforma e por séculos de esquecimento. Só em 1997 foi resgatado do olvido o Cristo Erguido, estátua atribuída a Miguel Ângelo, que no século XVII foi transferida de Roma para a igreja do Mosteiro de San Vincenzo Martire, nos arredores de Bassano Romano. As tropas de Napoleão passaram por lá, os alemães estabeleceram lá um posto de comando durante a 2.ª Guerra, mas ninguém se lembrou de furtar a estátua, tão ignorada e desprezada ela era. Nela, Jesus Cristo é figurado como numa estátua grega, com os músculos bem desenhados e o sexo à mostra, inteiramente nu, numa pose inegavelmente erótica..Em Portugal, em Espanha, em França, muitas Senhoras do Ó têm uma ou as duas mãos cortadas. É o que sucede, entre outras, com a imagem da Virgem da Expectação, do Museu de Arte Antiga, com a do Museu Grão-Vasco, em Viseu, feita por um autor desconhecido no século XIV, ou com a estatueta em madeira policromada da Basílica de Saint-Julien, em Brioude, França. Tudo se deve, por certo, à usura do tempo e à incúria dos homens, pois outra causa não se encontra para que as mãos de Maria surjam amputadas com tanta frequência e em tantos lugares..Sendo fortuito e acidental, trata-se, em todo o caso, de um detalhe bem metafórico, que na imperfeição das mãos cortadas ilustra perfeitamente o lugar a que as mulheres têm sido votadas durante milénios de História. À Igreja caberá reparar essa injustiça obscena e tremenda, a qual, além de contrária aos princípios da Humanidade e da dignidade cristãs, tem sido causa de fundos males (muito provavelmente, seriam bem menores e menos frequentes os casos de pedofilia se acaso as mulheres tivessem o devido e merecido destaque no governo da Igreja). À consciência do século XXI, que de modo algum se esgota e confunde com as idiotias woke muito em voga, repugna que o Vaticano seja uma gerontocracia patriarcal inteiramente liderada por homens, como revolta que as mulheres não celebrem missa e outros ofícios, não partilhem com os homens, em igualdade plena, tudo quanto à vida eclesial diga respeito..A negação dessa igualdade, dessa elementar justiça, tem sido justificada com o mesmíssimo argumento com que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, no século XIX, legitimou a segregação dos negros à luz da doutrina Separate, but equal, a ideia de que era admissível existirem autocarros, escolas ou casas de banho para negros e para brancos, desde que tivessem todos os mesmos níveis de comodidade e conforto. Em 1954, na célebre decisão Brown v. Board of Education, hoje posta em crise, o Supremo dos EUA corrigiu essa injustiça histórica, atentatória dos mais básicos valores políticos e morais. Afirmar que as mulheres têm na Igreja uma "dignidade" peculiar e própria, só delas, a qual é "diferente" da dos homens, e ao mesmo tempo impedi-las de serem sacerdotisas, bispas, cardeais ou papas, mais não é, ao cabo e ao resto, do que dizer que, no mundo eclesial, homens e mulheres são separate, but equal, perpetuando uma menorização aviltante e humilhante..Além de razões morais e de princípio, a igualdade entre homens e mulheres impõe-se por razões pragmáticas, pois não se duvide de que só as mulheres poderão resgatar a Igreja da gravíssima crise em que se encontra mergulhada, em parte ditada pelos ventos da secularização e pela "invernia da fé", de que falava o teólogo jesuíta Karl Rahner, em parte motivada por um modo de governo excessivamente desfasado das coordenadas do tempo e do mundo, para usar a linguagem do Concílio Vaticano II. Caso a Igreja não se abra definitiva e plenamente às mulheres, será dominada, cada vez mais, por ultraconservadores fanáticos, por tontos elitistas e snobes que pugnam pela "missa antiga", pré-conciliar, toda falada em latim, inacessível ao povo de Deus, por sectários radicais que sonham com a Igreja do tempo das catacumbas e das perseguições, desfasada do mundo e do tempo, reduzida a um punhado de eleitos, puríssimos e superiores. Uma Igreja contra mundum, sectária e raivosa - é isso que querem?.Ainda há pouco, o Papa Francisco teve de reduzir ao estado laical um inenarrável sacerdote norte-americano, o padre Frank Pavone, que, num vídeo de apoio a Donald Trump (!), foi ao ponto de colocar um feto morto num altar para se manifestar contra o aborto (no que vai sendo hábito nesta gente, a organização que lidera, Priests for Life, está envolvida em grandes trapalhadas e controvérsias financeiras, com gastos não esclarecidos e enorme opacidade nas contas)..Na história milenar da Igreja, feita de luzes e sombras, as mulheres têm tido as mãos amputadas, com isso se perdendo o contributo e a voz de metade da população humana, facto agravado por ser essa a parcela que mais frequenta os templos e atende aos cultos. É hora, é mais do que hora, de devolver as mãos a Maria, para que homens e mulheres possam finalmente pensar em conjunto, e em comunhão plena, que futuro querem para uma Igreja que deve ser de todos e para todos, mesmo para os não-crentes. Sem Maria, não haveria Jesus. E sem Jesus, não haveria Natal..Boas Festas..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.