Tabaco. "A lei não está a ser cumprida"
Apesar dos números alarmantes a nível nacional, a procura por consultas de apoio não para de crescer. Contudo, o médico de medicina familiar e especialista em apoio antitabágico Luís Rebelo sublinha que a nicotina tem efeitos demasiado profundos no cérebro humano e lutar contra a sua dependência é uma batalha para toda a vida. No Dia Mundial do Não Fumador, que se celebra este sábado, o especialista reflete sobre o que mudou e o que se manteve inalterado fora e dentro dos consultórios portugueses. "Ainda falta fazer mais, mas estamos cada vez melhor."
Faz-se acompanhar de panfletos, distribuídos pela sua secretária, prontos para serem entregues ao próximo paciente que recorre a Luís Rebelo para mudar de vida. "Mais vida sem tabaco", "Ame a sua vida, não fume!", três pequenas páginas sobre os efeitos do tabaco na gravidez e uma lista com benefícios para cessar o consumo. Pode parecer só papel, mas para muitos é o início de algo maior. O tema não é novo, principalmente para este médico de medicina familiar, que desde 2001 já observou mais de 1300 utentes para consultas de desabituação tabágica, no Centro de Saúde de Alvalade. Por todo o país, o número está a aumentar, garante.
O cenário nacional está a mudar e Luís Rebelo assiste de perto ao fenómeno, com vista privilegiada da cadeira do seu gabinete, onde recebe uma média de dez pacientes semanalmente. Em 2017, de acordo com a Direção Geral de Saúde (DGS), as consultas para apoio a fumadores aumentaram 25%. Não é uma ciência exata, mas indica uma principal e possível explicação: "Hoje em dia, as pessoas estão mais informadas." Conhecem o fado de levar uma vida dependente de tabaco, que em Portugal mata uma pessoa a cada 50 minutos, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE). Contudo, o médico elogia a evolução do apoio clínico ao longo dos anos. Há cada vez mais consultas e locais que as disponibilizam em Portugal.
De acordo com o INE, em 2017, dois em cada dez fumadores deixaram de fumar. O caminho, como explica o médico de medicina familiar, não é fácil e muito menos de curta duração. São fumadores ativos "todos aqueles que fumam, pelo menos, um cigarro por dia ou que inala ou vapeia diariamente nicotina", mas só se tornam não-fumadores depois de "terem deixado de fumar há mais de um ano".
O tratamento, como conta, é uma luta de várias frentes. Trabalhar a cessação tabágica é pressionar a desabituação, "mas também trabalhar a alimentação, ver se há peso que é preciso reduzir, trabalhar o estado de saúde mental dessa pessoa, trabalhar o exercício físico, para perceber se é uma pessoa sedentária ou não e que impacto tem isso na sua vida". "Tudo isto deve ser feito de uma forma integrada, ainda que nem sempre é possível mudar todas estas áreas da vida de uma pessoa", explica o também professor universitário da Faculdade de Medicina de Lisboa.
Tratar um fumador é também ter em conta que "a dependência é bicéfala: do foro físico e psicológico", por isso, "o tratamento tem que ser bicéfalo também". Os medicamentos são a solução normalmente aconselhada para combater o lado físico. Em 2017, e pela primeira vez, foi implementada a comparticipação dos medicamentos antitabágicos sujeitos a receita médica.
"Mas não chega dar pílulas às pessoas", sublinha o especialista. "É preciso sempre um trabalho na área psicológica, para ajudar as pessoas a mudar o comportamento e auxiliar a aprendizagem, - porque se uma pessoa tem 50 anos e fumou durante 40 anos, já nem se lembra o que é não fumar".
O acompanhamento deve durar, no mínimo, entre seis a 12 meses, alturas mais críticas para o processo de cessação de um fumador que, ao contrário do que costuma pensar, tem uma batalha em mãos para toda a vida. Depois de um ano sem fumar, um único cigarro é o que basta para regredir em tudo o que foi feito.
O profissional de saúde esclarece que "o cérebro que contactou com a nicotina fica para todo o sempre diferente daquele cérebro que nunca contactou com esta substância. Muitas das células cerebrais têm aquilo a que nós chamamos de memória imunológica e, num dia de casamento ou outra qualquer festividade, ao voltarem a contactar com uma dependência antiga, mesmo que em quantidades mínimas, essas células que estavam adormecidas vão ser acordadas".
A experiência diz-lhe que essas pessoas acabam por ter uma recidiva e voltam a consumir o número de cigarros que anteriormente consumiam.
"É raríssimo vir aqui a uma consulta uma pessoa que tenha 40 anos e que me diga que começou a fumar há um mês", conta. "Chegam cá tardíssimo, na vida adulta e já quase como idosos". E dessas são também raras as que estão realmente preparadas para deixar o vício do tabaco. "Só cerca de 10%", contabiliza, porque "cerca de metade dos fumadores ainda estão numa fase de contemplação - admitem falar da hipótese de deixar de fumar, ainda que com dúvidas - e cerca de 30% estão mais atrasados - não querem ouvir falar no assunto e dizem mesmo 'eu não quero deixar de fumar'".
O problema começa cedo e os jovens são uma preocupação iminente para este profissional de saúde, para quem a nicotina pode ser um escape psicológico para outros problemas. Apesar de a experimentação de tabaco nos alunos do ensino público dos 13 aos 18 anos ter diminuído, o tabaco continua a atrair os mais jovens e é na adolescência que que a larga maioria de fumadores inicia o consumo. "E nós sabemos, infelizmente, que em cada três jovens, numa amostra a partir dos dez anos, que experimentam tabaco, um torna-se dependente", explica o médico.
O que faz uma criança de apenas dez anos ligar-se tão facilmente ao tabaco é, para Luís Rebelo, uma questão com resposta fácil: "A nicotina tem tais propriedades ao nível do cérebro e do corpo humano que ajuda a preencher lugares vazios, onde faltam outras coisas. Ou porque falta ou porque está insuficiente. Estamos a falar de miúdos com pouco êxito escolar, com pouca auto-estima, com um círculo de amigos que já fuma, que em casa vê os pais a fumar e que têm alguma psicopatologia. Estes são os jovens de risco para o consumo de tabaco - e quem diz de tabaco diz de outras substâncias, porque é a porta de entrada para o álcool, e estes dois são a porta de entrada para outras substâncias também", explica.
Novos ou velhos. Em grande parte, chegam ao seu consultório por um extremo clínico qualquer. É, como explica, "mais do que querer deixar de fumar, é necessitar". "Porque o outro médico disse que acaba de ter um enfarte miocárdio ou porque tem problema na sua garganta para o qual é fundamental que deixe de fumar". No ano transato, uma em cada quatro mortes no grupo etário entre os 50 e 59 anos acontece devido ao tabaco, de acordo com o INE.
A Organização Mundial e Saúde (OMS) já alertou para os números: cada cigarro tira sete minutos de vida ao fumador. E parece que o conhecimento de informações alarmantes como esta já surte efeitos na população em geral. Contudo, Luís Rebelo aponta os acidentes de saúde como a maior causa para alguém decidir deixar de fumar. "Depois de algo acontecer ou se os avisarem que algo pode acontecer" pelo consumo frequente. Só aí costumam tomar a iniciativa.
Recorrentemente associado ao cancro do pulmão, o tabaco é responsável por muitas outras doenças cardiovasculares e respiratórias crónicas. É uma das principais causas evitáveis de morte no país e no mundo.
Em 2017, a Sociedade Portuguesa de cardiologia apontava a média de vida dos fumadores como sendo dez anos mais baixa que a dos não fumadores.
Contudo, o médico Luís Rebelo alerta que estes dados não devem descansar os fumadores passivos, que "podem ter as mesmas doenças que um fumador ativo, dependendo da suscetibilidade do próprio e do tempo de exposição ao fumo dos outros". Quando um fuma, todos fumam. O tabagismo passivo é considerado a terceira maior causa de morte evitável no mundo, de acordo com a OMS, e o risco de cancro do pulmão em não fumadores exposta a fumo do tabaco é 20 a 30% superior aos não expostos.
É um tema sobre o qual Luís Rebelo prefere não aprofundar. "Eu só sei o que chega ao meu escritório", começa por explicar. Mas é através do que vê lá de dentro que o torna capaz de apontar falhas no sistema português, com uma lei ainda insuficiente para fazer face aos números nacionais.
Estes variam entre regiões e o especialista apressa-se a dar o exemplo dos Açores, onde o consumo é elevado porque "o preço do tabaco lá é muito baixo" - embora, remate, "os profissionais de saúde estejam a fazer um grande esforço do ponto de vista clínico, com consultas".
Não hesita também em comparar Portugal com outros países: Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Brasil e até alguns estados na América do Norte, "que deveriam ser um exemplo para nós", portugueses, pela evolução nas estatísticas. O Brasil, por exemplo, ocupava o 34.º lugar no ranking da OMS de países com mais fumadores no mundo. Os dados são do ano passado, a mesma altura em que o país foi apontado num estudo financiado pela Bill & Melinda Gates Foundation e pela Bloomberg Philanthropies como uma história de sucesso devido à redução significativa de fumadores entre 1990 e 2015. Em apenas 25 anos, a subida de impostos associados ao tabaco e as inúmeras campanhas de sensibilização para o consumo fizeram descer para metade os números do Brasil.
Em Portugal, ainda há muito a ser feito, segundo Luís Rebelo, que afirma que muitas vezes "não se assume as políticas que são sabidas como corretas e necessárias só porque supostamente limitam a liberdade de outros". "O preço dos produtos é outra medida importante." Para o professor universitário, ainda é muito fácil adquirir tabaco, pois "as leis que limitam o acesso e em relação às máquinas de tabaco e os pontos de venda são muito liberalizadas".
No local de trabalho, em restaurantes e centros comerciais. Até 2007, em Portugal, era possível fumar nestes espaços públicos fechados. Mas uma lei que entrou em vigor a 1 de janeiro de 2008 veio obrigar a mudança de hábitos dos portugueses.
Uma década depois, já este ano, é publicado em Diário da República um decreto-lei que torna também proibido fumar em locais para menores, como infantários, creches, campos de férias, parques infantis e outros estabelecimentos de assistência infantil, mesmo que ao ar livre. "As medidas mais importantes em relação aos jovens não são as terapêuticas de medicamentos, são as políticas relacionadas com a proibição de fumadores em espaços fechados, nas escolas, à volta delas", aponta o médico.
O problema continua, para Luís Rebelo, na rigorosa aplicação da lei. "Não há inspeções e a lei não está a ser cumprida como deveria", lamenta.
Já há até planos para 2019. Mais comparticipação de medicamentos para deixar de fumar e mais consultas de auxílio à cessação tabágica são duas das propostas feitas pelo Governo para as Grandes Opções do Plano (GOP) para o próximo ano.
Ao analisar as mudanças dos últimos anos e os resultados que sentiu dentro do seu próprio consultório, Luís Rebelo não esconde a satisfação. "De grosso modo, em cada 3 ou 4 pessoas que entram nestas consultas, uma deixa de fumar". Contudo, a OMS já fez o retrato para 2025, ano para o qual estima que haja dez milhões de mortes devido ao consumo de tabaco.