As jabuticabas
Bolsonaro é condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral, essa jabuticaba", reclama um editorialista do jornal Gazeta do Povo, adepto do ex-presidente da República. "Temos de acabar com a jabuticaba da meta anual da inflação", exige Fernando Haddad, ministro das Finanças do governo Lula. O que é, afinal, perguntam-se os menos familiarizados com o Brasil, essa tal de jabuticaba, que une bolsonaristas a lulistas e aparenta ser insultuosa?
Na verdade, a jabuticaba é o saboroso fruto, parecido com uma uva (segundo a impressão de um leigo), da jabuticabeira. O que a torna especial é existir apenas em território brasileiro, razão para Mário Henrique Simonsen, ministro da área económica em governos da ditadura militar, ter sentenciado um dia: "Se só existe no Brasil e não é jabuticaba, é besteira".
O Tribunal Superior Eleitoral, terror do bolsonarismo, e a meta anual da inflação, dor de cabeça do lulismo, por só existirem no Brasil são, nas opiniões citadas, duas besteiras ou duas jabuticabas. E não são, claro, as únicas. Publicações brasileiras, como a Veja, o UOL e outras, de vez em quando, publicam listas de jabuticabas.
Nelas, constam logo à cabeça a inconveniente tomada de três pinos, em vez de dois, que obriga quem visita o país a munir-se de adaptadores e vice-versa, e a conveniente pizza meio-a-meio, que permite a um casal que não goste do mesmo sabor pedir, por exemplo, uma metade margherita e uma metade napoletana e até uma terceira modalidade para o filho numa só unidade.
Os duches elétricos, em vez do sistema de torneiras de água quente e fria, são citados, assim como o cúmulo burocrático de se exigir a autenticação em cartório de uma assinatura numa fotocópia. A inexistência de um imposto único, tipo IVA, a cobertura na TV dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal e o voto em urna eletrónica são outras "jabuticabas" que têm marcado a atualidade económica, judicial e política dos últimos anos.
Por outro lado, nessas listas de jabuticabas é dito que o hábito de tomar banho diariamente ou de escovar os dentes no trabalho é um exclusivo brasileiro incomum na Europa, assim mesmo, "na Europa", como se um continente tão diverso tivesse costumes idênticos. Mas mais estranho ainda é ler, numa das listas, que em mais nenhum lugar do mundo, além do Brasil, existe "saudade", sendo que já a avó de Pedro Álvares Cabral, coitada, se queixaria, muito provavelmente, de "saudades" nas longas viagens do neto.
O Brasil é um país único, inimitável, que se não existisse teria de ser inventado, mas a saudade, claro, não é uma jabuticaba. Nem os ótimos hábitos de higiene dos brasileiros.
Noutras democracias também se usa o (excelente) sistema de voto eletrónico. Há julgamentos da principal corte transmitidos ao vivo em mais cantos do globo. E não é só ao Brasil que falta IVA.
Os cartórios, infelizmente, são uma máquina inútil de comer dinheiro além do Brasil. Em Nova Iorque, a prática das pizzas divididas está disseminada faz tempo. E há pontos do globo onde também são necessárias tomadas de três pinos para carregar o telemóvel.
Mais: na Costa Rica, por exemplo, existe um Tribunal Superior Eleitoral - até é homónimo do brasileiro e tudo.
Aliás, na verdade nem sequer as jabuticabeiras, encontradas no México, na Bolívia, no Uruguai, no Paraguai e na Argentina sob o nome de guapuru, são uma jabuticaba.
Jornalista,
correspondente em São Paulo