As histórias únicas
Sempre houve histórias únicas como manifestações de poder. E, talvez, sempre vá haver. Em determinado momento uma elite decide qual a história que deve ser contada e como tendo por objetivo criar a realidade que lhe é mais interessante que seja conhecida.
A História é, pois, frequentemente usada de forma instrumental por quem tem poder, através de manipulações e reinterpretações que distorcem a forma como vemos as personagens e os acontecimentos do passado. Novas visões desconstroem as anteriores e reinterpretam factos da História.
A chave para superarmos as histórias únicas parece estar na própria História. Só o tempo, o estudo, a investigação, a isenção e resistência ao poder massificador fazem vir a verdade ao de cima. Só o tempo deixa assentar a poeira e ultrapassar a propaganda e as histórias do momento, mesmo numa época, como a que vivemos, em que graças à velocidade de circulação da informação se propagam, sem controle, as fakes news.
Nos últimos tempos tem havido manifestações crescentes em prol da necessidade de recontar algumas fases da História do mundo ocidental, nomeadamente dos Descobrimentos portugueses. Existem lados da História, que precisam ser contados, pois foram omitidos. Há dias, no Fólio - Festival Literário Internacional de Óbidos, a questão voltou à baila. Há o risco de uma história única. É importante refletir e debater o tema por evidente respeito aos Direitos Humanos e quando falamos cada vez mais numa cidadania da língua portuguesa
É razoável afirmarmos que o mundo não voltou a ser igual depois das caravelas portuguesas navegarem nos mares do Atlântico e derrubarem mitos persistentes. O conhecimento para a humanidade que trouxeram as descobertas marítimas de Portugal mudaram a História. No século XV os povos da Europa desconheciam a porcelana, o rinoceronte e a religião budista. Portugal possibilitou conhecimento, deu ao mundo a caravela, o astrolábio náutico, a passarola. Trouxe e levou cultura para os locais para onde foi. Levou a língua portuguesa para os cinco continentes e foi um grande precursor da globalização.
Mas o lado negativo dos Descobrimentos - a escravatura - tem sido sistemática e institucionalmente negligenciado, omitido, esquecido, apesar do peso que teve. Durante anos não se ouviu essa componente, a narrativa, nomeadamente do Estado Novo, era a da epopeia de heróis, homens e brancos. Nos últimos anos isso mudou, vários debates
eclodiram sobre a memória colonial e a necessidade da descolonização do espaço público, que trouxeram luz.
Assim como falamos da nossa herança romana, apesar do que os romanos fizeram aos lusitanos, assim como celebramos vínculos culturais com França, apesar das invasões francesas, também cada vez mais, nós portugueses, assumimos a face negativa dos Descobrimentos sem tabus ou imagens retocadas.
Os fatos positivos da História, nomeadamente os feitos marítimos dos séculos XV e XVI, devem ser transmitidos às novas gerações, mas também o devem ser os negativos.
Um museu dos Descobrimentos, que de tempos em tempos surge como possibilidade no espaço político e mediático, a existir, deve trabalhar as vitórias de navegação, mas também e necessariamente a escravatura. Como também deve trabalhar a língua portuguesa nas suas múltiplas versões como parte do nosso património cultural e da nossa cidadania comum.
Muitos e muitos que embarcaram em África e foram para o Brasil, Cuba, ou Montevideu, não têm nome, nem rosto na História. É lhes devido esse tributo a quem não existiu para a versão da História que aprendemos no passado. É devida aos seus descendentes uma palavra. As reparações históricas devem ser muito ponderadas e nem sempre são o melhor caminho, mas algo deve ser feito. Portugal foi dos primeiros países no mundo a abolir a pena de morte e no próximo ano comemora os 50 anos do 25 de abril, que para Portugal representou liberdade, mas para os países africanos que falam a língua portuguesa representou independência, sendo um momento da História que nos aproxima e que permite a serenidade necessária para debater o assunto.
Tal como devemos assumir o nosso percurso de vida, devemos assumir a nossa História, sem narrativas exclusivas ou verdades imutáveis, com equilíbrio e humildade, rejeitando as manifestações de poder das elites, para que não haja histórias únicas.