As grutas subaquáticas são "verdadeiros museus de história natural"

Jill Heinerth foi a primeira pessoa a mergulhar no interior de um icebergue e é em cavernas debaixo de água que se sente em casa: "É como mergulhar nas veias da mãe natureza."
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"Já mais pessoas estiveram na Lua do que em alguns dos sítios onde Jill esteve debaixo de água." As palavras são do realizador James Cameron e servem para apresentar Jill Heinerth, a canadiana que já fez, segundo os seus cálculos, mais de 7500 mergulhos. Conhece águas de todos os oceanos e continentes, das águas turquesas das Bahamas àquelas que atraem todos os anos um desfile de jamantas em Santa Maria, nos Açores, "um dos mais adoráveis sítios" para o mergulho, diz. Já mergulhou sob vulcões em Lanzarote e sob o deserto do Sara, teve encontros imediatos debaixo de água com ursos-polares e com crocodilos, e fez o que nunca ninguém tinha feito quando resolveu mergulhar no interior de um icebergue na Antártida, numa experiência que quase lhe custou a vida.

"É considerada uma das atividades mais perigosas do mundo", concede a exploradora canadiana, em conversa com o DN, relembrando uma brutal contabilidade: "Já perdi mais de 100 amigos e colegas nos mares ao longo do tempo". Uma das principais referências do mergulho em todo o mundo, Jill Heinerth é uma das oradoras do congresso Diving Talks, que este fim de semana junta em Tróia vários dos nomes mais importantes de uma atividade em franco crescimento.

Jill costuma contar que o seu primeiro mergulho foi logo aos dois anos, quando rastejou para fora de uma doca e quase se afogou. A mãe ficou aflita, mas a memória de Jill prefere lembrar como eram "lindas as ondulações na água refratadas como arco-íris na areia". Sempre quis mergulhar. E foi o que decidiu definitivamente fazer, já como jovem adulta, no início dos anos 1990, quando fechou a pequena agência de design gráfico que geria em Toronto e se mudou para as Ilhas Caimão para se dedicar ao mergulho a tempo inteiro - depois disso mudar-se-ia para a Florida, onde vive perto de uma das mais famosas cavernas para mergulho, Ginnie Springs.

Foi nesse nicho, mergulho em grutas e cavernas, que se especializou. E juntou-lhe o gosto pela fotografia e pela comunicação, dedicando-se à realização de reportagens fotográficas e documentários sobre o mundo subaquático. Por isso, quando no ano 2000 soube da notícia de que o maior icebergue da Antártida (o B-15, um bloco de gelo do tamanho da Jamaica) se tinha soltado e ficado à deriva, não hesitou: "Resolvemos propor à National Geogrpahic fazer algo que nunca ninguém antes tinha feito, mergulhar no interior das grutas de um icebergue. Pareceu-nos uma excelente ideia para um documentário", conta ao DN, por telefone, desde os EUA.

Na verdade, admite, não sabia sequer se haveria grutas por explorar no interior de um icebergue. Mas a hipótese era demasiado atrativa para não explorar. "Não sabíamos o que íamos encontrar, mas foi uma descoberta importante. Ainda hoje, 20 anos depois, tem uma extraordinária importância sabermos o que podemos encontrar debaixo de um icebergue", sublinha, numa época em que o degelo é uma das maiores ameaças ambientais.

A experiência inédita poderia ter sido a última. Jill ficou presa no interior do icebergue quando a fenda por onde mergulhou se fechou e a força da corrente a empurrava para baixo. O que era suposto ser um mergulho de uma hora tornou-se numa luta pela sobrevivência ao longo de três horas. Foi uma das diversas situações-limite por que já passou ao longo de mais de 30 anos de mergulho de cavernas. Não se pense, no entanto, que é imune ao medo. Pelo contrário, diz: "O medo é essencial para calibrar a aventura."

Como gosta de transmitir nas palestras que dá por todo o mundo, "o importante em situações dessas é não entrar em pânico e ser capaz de pensar nos pequenos passos que podem melhorar a situação em que estamos". No fundo do mar, Jill Heinerth sabe que "não há ninguém a quem ligar em SOS". "Temos de ser capazes de resolver os problemas sozinhos". E para isso, reforça, é "muito importante" ter definidas as linhas vermelhas do risco: "Um explorador deve saber quando voltar para trás ou quando dizer não".

Na Antártida, Jill encontrou a solução escapatória na vida animal que descobriu no interior do icebergue. "Lembrei-me que tinha visto uns pequenos peixes transparentes, do tamanho de um polegar, a esconderem-se em pequenos buracos na parede de gelo quando a corrente aumentava", recorda. Foi a esses pequenos buracos que a mergulhadora canadiana e a sua equipa (o então marido e um fotógrafo da National Geographic) se agarraram para ganhar tração e conseguir escapar às correntes, voltando à superfície. Passado pouco tempo, já no barco, um grande estrondo fê-los voltar a cabeça: a parte do icebergue onde tinham mergulhado acabara de se partir. A morte tinha mesmo ficado para trás.

"Mergulhar dentro de um icebergue é como ir para outro planeta", conta. A explosão de cores, do gelo "azul, branco, às vezes da cor de um ovo de tordo outras de um turquesa profundo" ao fundo do mar "vermelho, laranja e amarelo", fornece um contraste impressionante, recorda Jill, que ficou surpreendida com a diversidade da fauna e da flora que encontrou por baixo do enorme bloco de gelo flutuante. "O fundo estava coberto por um tapete felpudo de organismos vivos. Havia pequenos vermes em forma de árvore de Natal e coisas que pareciam palmeiras em miniatura a flutuar na corrente, uma paisagem deslumbrante", diz. Se a experiência visual fascina, a experiência sonora pode ser bem mais "assustadora", com os "constantes barulhos de um icebergue a mover-se e transformar-se, com pedaços a caírem e grandes estrondos na água".

As expedições de Jill Heinerth têm também cada vez mais uma motivação científica. Com as alterações climáticas e a proteção dos oceanos na agenda de prioridades da humanidade, as grutas subaquáticas podem esconder segredos preciosos. "São autênticos museus de história natural, onde podemos aprender muita coisa. Sobre civilizações antigas, por exemplo, mas também sobre biologia de seres vivos que se encontram nestes ambientes, alguns deles com capacidade para sobreviverem em longos períodos. Isso pode trazer informações preciosas sobre adaptação de organismos a diferentes condições de luz ou temperatura", realça.

Um desses exemplos que a exploradora costuma dar é o do lagostim albino cego, que pode viver 200 anos dentro de uma caverna, quando o lagostim do rio vive apenas dois ou três anos. "Qual o segredo daquele lagostim que vivendo num ambiente com uma escassez incrível de alimentos, onde tem que economizar energia? Essa é uma estratégia interessante de se observar. Alimenta-se do quê e com que frequência? E é isso que o faz viver mais? Todos esses animais com essas características únicas podem ser capazes de nos ensinar muito sobre a evolução, sobre a sobrevivência, e talvez até sobre novos compostos químicos que poderão ser usados para medicamentos úteis para a humanidade".

Estes e outros exemplos serão abordados neste congresso Diving Talks por Jill Heinerth, a "exploradora", mas também escritora, cineasta, consultora, cientista cidadã, instrutora e mulher que se sente realizada ao "mergulhar nas veias da Mãe Natureza" e cujas aventuras pode conhecer melhor no seu site Into The Planet

Além de Jill, passam por este congresso vários especialistas nacionais e internacionais em diversas áreas ligadas ao mergulho, como o egípcio Ahmed Gabr, detentor do recorde de mergulho em profundidade com equipamento autónomo (332,5 metros), a italiana Cristina Zenato, especialista no mergulho com tubarões, ou os portugueses Armando Ribeiro, Rui Luís e Paulo Costa.

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