As greves e a JMJ

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"Não conheço nenhum setor em que haja uma greve no sentido de impedir o funcionamento" da Jornada, declarou Isabel Camarinha, Secretária-Geral da CGTP, em 8 de julho, acrescentando que o Governo e as empresas têm "condições" para dar respostas aos trabalhadores, levando a uma desmarcação destas paralisações.

A sindicalista tem toda a razão, no que respeita à primeira afirmação. Muito embora tenham sido anunciadas greves em vários setores, não há nenhuma greve específica suscetível de impedir a Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Todavia, tal não se deve à bondade dos promotores das greves, mas apenas ao facto de nenhuma greve, seja nos transportes, seja em outro setor, poder, por si só, impedir o evento, considerado o maior acontecimento da Igreja Católica, que se vai realizar entre 1 e 6 de agosto, sendo esperadas cerca de 1,5 milhões de pessoas.

Estão anunciadas greves que afetarão sobretudo os transportes (CP, Metro e outros transportes coletivos), Saúde (médicos e enfermeiros), limpeza (cantoneiros e outros trabalhadores), Educação (pessoal não-docente). As Forças de Segurança (PSP e GNR) que não podem fazer greve, anunciaram ações de protesto. As greves e a atmosfera das ações de protesto, a concretizarem-se, afetarão drasticamente a JMJ.

D. Américo Aguiar, presidente da Fundação da JMJ e bispo auxiliar de Lisboa, manifestou a sua compreensão: "Tenho toda a consciência de que vários setores profissionais, para os polícias, para os trabalhadores dos resíduos sólidos urbanos, médicos, enfermeiros, para tantos setores da sociedade, olham para a Jornada como uma oportunidade de fazer ouvir as suas reivindicações."

Porém, há quem se interrogue: serão legítimas estas greves?

Dúvidas não subsistem sobre a sua legalidade. O direito à greve está consagrado no artigo 57.º da Constituição da República Portuguesa, sendo um dos direitos, liberdades e garantias fundamentais que a conquista da democracia proporcionou. A Constituição estatui que são os trabalhadores a definir o âmbito de interesses a defender através da greve e que esse âmbito não pode ser limitado por lei.

No entanto, parte da doutrina jurídica, no âmbito do Direito do Trabalho, aponta como critério o princípio da proporcionalidade ou de correspondência de sacrifícios. Assim, se uma determinada greve, tendo por finalidade interesses restritos de um grupo, afetar ou originar prejuízos desproporcionados para a comunidade, é legítimo configurá-la como um abuso do direito.

O Tribunal de Justiça pronunciou-se já sobre a necessidade de ponderar, de forma equilibrada, os interesses em conflito, admitindo que as ações coletivas não devem ultrapassar o necessário para alcançar os objetivos, e admitindo claramente um princípio de proporcionalidade.

A figura do abuso do direito, prevista no artigo 334.º do Código Civil, torna "ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito". Ou seja, neste caso, o direito existe, mas se exceder manifestamente os ditames da boa-fé e do fim social ou económico poderá ser classificado de ilegítimo.

Daí que a interrogação sobre a legitimidade destas anunciadas greves tenha razão de ser. É do interesse nacional que a JMJ decorra da melhor maneira e que os jovens de todo o mundo sejam por nós acolhidos da melhor forma, levando consigo a melhor imagem de Portugal. Acresce o facto de as televisões de todo o mundo transmitirem o evento, que fará do nosso país, por alguns dias, o centro do mundo religioso.

Por isso, as greves anunciadas, ainda que lícitas, podem ser ilegítimas por abuso do direito, dada a manifesta desproporcionalidade entre os interesses de grupos específicos e o prejuízo para o interesse nacional. Esperemos, porém, que o bom senso prevaleça, o que implica não exatamente a satisfação cega das reivindicações dos trabalhadores, como declarou a combativa Isabel Camarinha, mas, sobretudo, a prevalência do interesse nacional.

Advogado

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