As forças desarmadas do Brasil
As Forças Armadas iemenitas estão em guerra com as milícias huti, as Forças Armadas etíopes estão em guerra com o Exército do Tigré, as Forças Armadas moçambicanas estão em guerra com os militantes wahabitas, as Forças Armadas ucranianas estão em guerra com o invasor russo. Já as Forças Armadas do Brasil estão em guerra com o voto por urna eletrónica.
Daí, o ministro ultrabolsonarista da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, ter pedido ao Tribunal Eleitoral com caráter "urgentíssimo" - assim mesmo, no superlativo absoluto sintético, como se o Planalto estivesse à beira de sofrer um raide aéreo de urnas - o acesso ao "código-fonte" do sistema do voto eletrónico.
Sucede que esse código-fonte a que o general pediu acesso "urgentíssimo" está desde 4 de outubro do ano passado, como sucede em todos os sufrágios, à disposição das entidades fiscalizadoras - os partidos, a Ordem dos Advogados, o Ministério Público, as universidades consultaram-no. Só as Forças Armadas, talvez porque há um ano não tivessem ainda sido divulgadas sondagens a prever a derrota de Bolsonaro para Lula da Silva e não houvesse, portanto, ainda a motivação para descredibilizar o voto eletrónico, andaram distraídas este tempo todo.
As Forças Armadas, entretanto, já constituíram um grupo de trabalho de fardados para examinar as urnas. Entre os designados estava Ricardo Sant"anna, coronel que se autointitulava nas redes sociais "um aguerrido bolsonarista" e disseminava notícias falsas sobre as urnas eletrónicas na forma daqueles memes infantojuvenis tão típicos dos apoiantes do presidente.
O Tribunal Eleitoral resolveu então dar um puxão de orelhas público às Forças Armadas excluindo o coronel em causa do grupo de fiscalização porque "a posição de avaliador (...) não deve ser ocupada por aqueles que negam prima facie o sistema eleitoral brasileiro e circulam desinformação a seu respeito". Sem saída, as Forças Armadas apagaram, sem mais explicações, os perfis nas redes sociais do coronel disseminador de fake news e substituíram-no por outro fardado qualquer.
Na sequência destas notícias, não causou surpresa a sondagem Ipsos realizada em 28 países a propósito da confiança da população nas respetivas Forças Armadas: o Brasil, com 30%, cinco a menos do que em 2021, ficou empatado em 24º lugar, 11 pontos abaixo da média global.
Como a sondagem foi realizada em maio e junho, os episódios do pedido "urgentíssimo" de acesso ao que estava ao alcance de toda a gente e o do coronel que espalhava desinformação primária nas redes nem entraram na contabilidade.
Mas as notícias de que as Forças Armadas compraram 600 toneladas de picanha, 254 mil quilos de salmão e rios de cerveja, uísque e conhaque para as tropas terão contribuído. E o escândalo - com repercussão internacional - da compra pelos quartéis de 35 mil comprimidos contra a disfunção erétil, a preços 143% acima do tabelado, e do investimento de 700 mil euros em próteses penianas, mais ainda.
Sob escrutínio, desde que decidiram andar de braço dado com o mais inenarrável dos governos, as Forças Armadas deitaram por terra, em meros quatro anos, a credibilidade que demoraram 30 a reconstruir, com paciência e sobriedade, depois da ditadura militar.
Mas, cá entre nós, adaptando a célebre frase de Groucho Marx, nunca deu para confiar muito numa instituição que um dia aceitou Bolsonaro como sócio.
Jornalista, correspondente em São Paulo