As dores de crescimento do gigante Pink Floyd
A discussão tem mais de quatro décadas mas, seguramente, renascerá agora, fresquinha como nova, quando chegar às lojas (a 11 de novembro) a coleção Cre/ation: The Early Years 1965-1972. São nada menos de sete CD, com os seis primeiros assentes no rigor cronológico e num conceito que quase os autonomiza, com um sétimo, considerado bónus, que paira sobre esse período, tão curto mas tão intenso, da existência dos Pink Floyd.
A linha de demarcação não podia ser mais clara: desde as primeiras gravações do grupo (algumas delas já recuperadas em 1965: Their First Recordings, publicado em novembro de 2015) até à fronteira que se chamou The Dark Side Of The Moon, naturalmente excluído desta recolha.
Os argumentos, entretanto debatidos e esbatidos, que se preparam para voltar à superfície não sofrerão grandes alterações: de um lado, manter-se-ão os que consideram "menor" tudo o que aqui se congrega, como se de uma simples preparação, de um estado embrionário se tratasse, até à explosão de Dark Side (confirmada, depois disso, com Wish You Were Here e, sobretudo, com The Wall). Do outro, permanecerão os radicais que olham para a fase agora compilada como a única realmente interessante - e importante - do grupo que chegou a juntar Syd Barrett, Roger Waters e David Gilmour sob o mesmo "manto protetor". Depois disso, sentenciam, o êxito cresceu em paralelo com as "cedências", o gigante Floyd passou a ostentar pés de barro e uma pecadora obsessão pelo brilho das libras acumuladas.
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Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: ignorar o peso que The Dark Side Of The Moon e alguns dos seus sucessores representam, e para múltiplas gerações, na história do rock, é digno da alegada tática da avestruz, que enterra a cabeça e parte do pescoço na areia... para não ver a realidade. Por outro lado, considerar tudo o que os Pink Floyd fizeram de The Piper At The Gates Of Down a Obscured By Clouds (o que inclui Ummagumma, Atom Heart Mother e Meddle, por exemplo) como uma série de esboços para o esplendor vindouro é subscrever uma tese que apouca as originalidades, as tendências psicadélicas, a aproximação entre o rock e a música (dita) contemporânea de uma banda que, sem perder de vista a opção pelo crescimento, deixou pelo caminho múltiplas escalas de mérito, profusamente apresentadas nesta coleção que, não escondendo a piscadela de olho aos entusiastas e aos estudiosos do grupo (como se prova, entre outros momentos, pela presença de nove versões de um mesmo tema, John Latham), nos ajuda a recordar as dores de crescimento quando, ainda numa fase pura de afirmação, a banda assistiu, impotente, ao enlouquecer do seu líder natural, Syd Barrett (1946-2006), que passou muitos anos internado em instituições "reservadas" para doentes mentais.
Contributos para o mito
Daí parte, aliás, uma das mais curiosas especulações em torno deste conjunto que integra o lote restrito dos que ganharam direito a uma certa mitologia própria: como teria sido o futuro dos Pink Floyd se Barrett não tivesse sucumbido aos excessos com o LSD e aos desvios da mente? Se olhássemos para os primeiros registos desta "escavação", sem contabilizar a "abertura de horizontes" garantida pelo álbum de estreia, até poderíamos fundamentar o palpite de que a banda ficaria muito mais perto de uns Rolling Stones ou de uns The Who do que veio a confirmar-se, moldando ritmos, melodias e arranjos que modernizavam mas não renegavam os blues e o R&B.
Sublinhe-se: Barrett escolheu o nome Pink Floyd (depois de abandonada a ideia de chamar ao conjunto The Tea Set) com base em dois homens do blues, Pink Anderson e Floyd Council. No entanto, é inegável que, logo ao primeiro CD desta coleção - chamado Cambridge St/ation e relativo aos anos 1965-1967 -, se percebe que há balanço para ir mais longe.
O segundo disco, Germin/ation, apontado a 1968, abarca o período da transição, com a chegada de David Gilmour à companhia de Barrett, Waters, Richard Wright e Nick Mason, sobretudo para garantir que seriam supridas as "ausências cerebrais" do líder. A coabitação não chegou a durar meio ano - Barrett acabou mesmo por se afastar, ou ser afastado, conforme as perspetivas. O que permitiu a Waters chegar-se à frente na orientação musical, ainda que na época abrangida por esta recolha - que prossegue com Dramatis/ation (1969), Devi/ation (1970), Reverber/ation (1971), Obfusc/ation (1972) e com o tal bónus, Continu/ation, que já acolhe uma gravação de palco de 1974 - ele partilhasse muito mais tarefas de composição do que se registou em períodos e discos posteriores.
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Com um recurso (parcimonioso mas presente) à eletrónica, com o abrir de asas do inconfundível estilo de Gilmour na guitarra, com as aventuras cheias de surpresas de Waters, com uma sempre impressionante capacidade de reprodução em palco (e a coleção não é modesta na demonstração desta característica), vamos chegando ao que seria definido como a música "planante" dos Pink Floyd, estando presente as longas sequências que lhes serviam de emblema, como Atom Heart Mother (do álbum com o mesmo título) ou Echoes (de Meddle).
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Por outras palavras, torna-se possível ir percorrendo esta apetecível busca arqueológica da mesma forma que se folheia um diário: há ocasiões categóricas e momentos chocantes, há repetições (e até casos em que uma mesma "declaração", ou canção, serve argumentários distintos ou opostos), há repetições, há linhas mestras que vão ficando traçadas. Depois de The Endless River (2014) servir para anunciar que o rio ia mesmo deixar de correr, este mergulho na nascente e esta navegação pelos primeiros anos vale pelo prazer e pela lição. Nalguns casos, a música tem mais de meio século, é certo. Mas, tal como acontecia num anúncio bem antigo, a resposta aplicável pode ser a mesma: "Pois olhe, não parece".
The Early Years, 1967-1972
Pink Floyd
Parlophone
Caixa: 499,99euro
2CD: 19,99 euros