As diferentes formas do medo na Cinemateca
A Vítima do Medo (1960), de Michael Powell
Dia 30 às 18.30 e dia 31 às 21.30
O trabalho da morte de Michael Powell
Cinema sobre o medo? Não exatamente. Neste caso, devemos falar de cinema habitado pelo medo. A personagem central é um cineasta amador que utiliza a sua câmara como instrumento de um terrível dispositivo dramático: ele filma as suas vítimas femininas nos próprios momentos em que as mata - o irremediável pânico que as invade é o tema visceral do seu desejo de cinema.
Raras vezes o cinema arriscou tanto, e de modo tão radical, na ilustração simbólica dessa maldição para sempre consagrada no célebre axioma de Jean Cocteau: "O cinema filma a morte no trabalho." Não se trata apenas de retratar um assassino que usa a técnica cinematográfica para consumar os seus crimes. Através dessa dimensão "policial" da intriga, este é um filme sobre o desejo de ver (o título original, Peeping Tom, remete para a noção de voyeurismo) e a sua cruel cumplicidade com a pulsão de morte.
No âmago desta história contada com o rigor metodológico de um ensaio sobre os fantasmas na natureza humana está, como é óbvio, um outro medo visceral: o dos homens face às evidências e, sobretudo, aos enigmas do universo feminino. Grande questão existencial e cultural que, evidentemente, não é possível enfrentar num mundo em que se coloca no mesmo plano uma "violação" e um "apalpão" (recentemente, Matt Damon chamou a atenção para a necessidade de não banalizar tudo isso numa guerra infinita entre "homens" e "mulheres", mais não conseguindo do que uma série de pueris condenações mediáticas).
Enfim, está longe de ser uma questão dos nossos dias... Muito incompreendido na altura do seu lançamento, o filme contribuiu para uma certa marginalização do realizador Michael Powell (1905-1990), ele que tinha sido consagrado pelos clássicos da produção britânica, incluindo Os Sapatos Vermelhos (1948), que assinara com Emeric Pressburger. Lembremos, por isso, que para a reavaliação artística de Powell muito contribuiu Martin Scorsese e também Thelma Schoonmaker (que foi casada com Powell e é a montadora da maior parte dos títulos da filmografia de Scorsese). Registe-se ainda a calculada ironia decorrente do facto de o papel central de A Vítima do Medo ter sido entregue a Karlheinz Böhm - ele era, afinal, o romântico imperador apaixonado pela princesa Sissi na série de filmes protagonizados por Romy Schneider.
João Lopes
A Pantera (1942), de Jacques Tourneur
Dia 11 às 19.00 e dia 24 às 18.30
Tourneur e o jogo subtil da psicanálise
Luzes e sombras. O eco de passos numa rua noturna deserta. Um arbusto que se agita pela presença de algo ou um rugido de origem incerta Em tudo isto reside a arte pura da sugestão. Com ela Jacques Tourneur modelou uma das mais sofisticadas e distintas obras do suspense, famosa pela cena numa piscina às escuras, em que a aparição abstrata de um animal selvagem causa o pânico de uma mulher. Trata-se do primeiro filme produzido por Val Lewton para a RKO Pictures, que, com baixo orçamento, tinha por missão redefinir o género. Seguiram-se notáveis experiências, como O Homem Leopardo (1943), também de Tourneur, O Túmulo Vazio (1945) ou mesmo a sequela A Maldição da Pantera (1944), mas nenhuma com a perfeição deste A Pantera.
Ficou para a história como um exemplo supremo de como "o menos é mais", noção que Tourneur seguiu religiosamente afirmando que o espectador acredita melhor no que não vê... Digamos que é também (e muitas vezes, sobretudo) das imagens ocultas que se faz bom cinema. Porquê mostrar a mutação de um corpo feminino em animal, se podemos seguir as pegadas de pantera que se transformam em pegadas de sapatos altos depois do ataque? Imagine-se a elegância deste gesto da câmara de Tourneur, que põe a um canto quaisquer efeitos especiais.
A Pantera é um filme que se constrói a partir de um medo individual e que de forma sedutora nos envolve nos demónios interiores de Simone Simon (atriz escolhida por Lewton devido ao seu semblante felino). No papel de uma imigrante sérvia que se casa com um americano (Kent Smith), ela é uma jovem mulher angustiada com a superstição - assente numa lenda cultural - de que não pode consumar a intimidade com o marido sob o prejuízo de se transfigurar numa cat person. Neste universo de pulsões sexuais recalcadas, em que a psicanálise se converte em jogo cinematográfico, na representação de uma sociedade cada vez mais pragmática, é a própria personagem do psiquiatra de Simon que se encarrega do aviso: "Somos vítimas do medo." Uma emoção que é física e dependente de uma estética rigorosa e económica. Jacques Tourneur trabalhou no sentido desse requinte narrativo, nunca superado na sua latejante modernidade. Paul Schrader fez uma boa tentativa com A Felina (1982), mas não há primor como o do original.
Inês N. Lourenço
Violadores - A Invasão Continua (1993), de Abel Ferrara
Dia 10 às 18.30
Abel Ferrara e os prazeres de sermos invadidos
O medo que vai tomar conta da Barata Salgueiro terá filmes que hiperbolizam ideias de medo. Muitas ideias de medo. Algumas delas que dialogam entre si e são capazes de criar mapas de emoções fortes cujas sinalizações apresentam rimas. É curioso perceber que o preto e branco de David Lynch de No Céu tudo É Perfeito pode funcionar como contraponto para as cores berrantes com que Dario Argento nos agride em Suspiria. Ou intuir que A Semente do Diabo, de Roman Polanski, seja a absoluta alternativa ao poder explícito do horror de Tobe Hooper em Massacre no Texas.
Mas de todas as propostas deste ciclo há um objeto que parece sobressair isolado na sua estranheza, o genial Violadores - A Invasão Continua, de Abel Ferrara, versão muito livre da novela de Jack Finney, que já tinha dado ao cinema dois clássicos: primeiro o de 1956, A Terra em Perigo, de Don Siegel, e, em 1978, a demência de Philip Kaufman, A Invasão dos Violadores.
Ferrara, pela primeira vez a filmar para um grande estúdio de Hollywood, não faz o remake da praxe e dá a volta ao conceito da "encomenda". O que consegue nesta mistura de filme de terror com sci-fi série B está na ordem do milagre. Uma visão sobre o quão negra pode ser a nossa alma, mesmo quando a premissa fala de uma visita hostil de seres do outro mundo (os bodysnatchers apoderam-se dos corpos dos humanos), com direito a metáfora sobre os perigos de uma sociedade demasiado uniformizada. O argumento de Nicholas St. John, Stuart Gordon e Dennis Paoli propunha uma leitura crítica de uma América que desumanizava, embora a pujança de Ferrara apostasse tudo numa crónica hipersexualizada do processo de invasão corporal. Um Ferrara a babar-se por uma erotização do mal, da invasão. Ao mesmo tempo, pega nos códigos do chamado cinema trash e dá-lhe uma estilização a meias com o imaginário de novela pulp e da ficção científica menos nobre.
Bodysnatchers, antes de ser um filme sobre corpos e peles, é uma reflexão sobre o modo como o cinema moderno lida com as emoções (ou a falta delas). No Festival de Cannes passou com alguma aclamação, mas depois a Warner não o soube lançar comercialmente. Era um filme demasiado à frente do seu tempo.
Nem de propósito, no Medo da Cinemateca, há um outro filme que joga com o pavor do contágio. Chama-se Alien, de Ridley Scott...
Rui Pedro Tendinha
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