As conversas com os nossos pais

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A globalização foi das coisas sobre que mais se teorizou nas últimas décadas. Houve uma imensidão de académicos e cientistas que nos alertou para vicissitudes, virtudes e defeitos. Em termos ambientais, não houve falta de avisos à navegação por quem nos pedia, por favor, que nos preocupássemos e que pensássemos se queríamos, afinal, continuar vivos ou passar a dinossauros. De forma preocupada, picavam o nosso sono e atenção.

Uma reação recorrente foi carimbar esta geração de pensadores com o pessimismo. Percebemos hoje como, do outro lado da esperança, estavam ao lado da lucidez. Estava lá tudo para ver que um mundo que desrespeita a natureza não resulta. A "doença das vacas loucas" devia ter-nos chamado ao bom senso.Como achámos que não haveria problema em alimentar animais com rações feitas de farinha de ossos de outros animais? Mas há exemplos para além da cadeia alimentar (nem só de pão se vive). O que se podia esperar de um mundo que vende e compra dinheiro com o próprio dinheiro e que especula sobre intenções de negócio em bolsas e sobre imobiliário em bolhas? Agora, que atravessamos o que já chamam "Grande Confinamento", percebemos que já devíamos ter aprendido algo desde a Grande Depressão.

No fundo, o problema-zero de todo este "ciclismo" de crises talvez seja a nossa inabilidade de aprender globalmente com qualquer espécie de crise. O que aprendemos, por exemplo, com o VIH? O estigma já não faz a doença nem a diferença na terapêutica? A deontologia de dados e a investigação pela articulação de esforços têm mais fôlego? Não sei. O preconceito, esse, eu sei que sobrevive. Confesso que estou saturada (o confinamento não ajuda) de ouvir comentários à laia de Trump sobre o "vírus chinês", do género: "Eles comem tudo! Não deixam nada!", como se fosse a China a culpada de tudo isto. Salvaguardado o respeito pelo relativismo cultural e gastronómico, a história ensina-nos que só o condimento da fome e da escassez leva um povo ao bitoque de morcego em detrimento de outro.

Alguns "teórico-pessimistas" de que falei queriam que à globalização económica e comunicacional correspondesse uma nova ordem mundial e política. Num mundo com Trumps e Bolsonaros, esse caminho é tudo menos fácil. Mas não é por isso que deixa de ser o mais sensato. É fundamental continuar a dar poder a organizações como a OMS, no campo da vigilância e defesa sanitárias, no comércio e na indústria estética e alimentar. Neste momento, é mesmo vital. Isso e a necessidade de intergeracionalizar o conhecimento. Todos temos ascendentes que já não estão connosco. Por entre os seus retratos e memórias, temos de aprender a ensinar o conhecimento e a sensatez que nos deram. Já parámos, já estamos a pensar e só falta mudar. Se não desistirmos, lá chegaremos.

Deputada do PS

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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