"As conversas com Fonseca e Costa ajudaram a acabar o filme"
Antes da morte de Fonseca e Costa o Paulo estava a montar o filme praticamente desde o início da rodagem. É importante que isto fique claro, não?
Sim, nesse processo fui sempre conversando com ele sobre o que estava a ser feito e o caminho do próprio filme. Depois deu-se este choque - foi um choque!
[youtube:7kapkG8LjJY]
Devido ao estado de saúde de Fonseca e Costa as filmagens tinham um ritmo mais desacelerado?
Filmava-se o que ele conseguia, mas também não sei qual o ritmo que ele imprimia às rodagens. Foi a primeira vez que trabalhei com ele. Mas é evidente que fisicamente estava muito frágil e tinha perfeita consciência disso, bem como toda a produção e equipa: as coisas foram-se ajustando de maneira a ele poder filmar ao ritmo que podia. Ele foi ver material comigo numa sexta-feira e, depois, no dia a seguir, entrou para o hospital e já não voltou. Estavam feitas seis, sete semanas de rodagem. Digamos que estavam rodados praticamente dois terços do filme e tudo já estava alinhado ou montado. Ele foi sempre acompanhando e fazendo sugestões aqui e ali. A verdade é que faltavam filmar ainda algumas sequências fundamentais. O importante para dizer é que isto é um filme. Não é um filme fragmentado ou inacabado! Este é um filme inteiro, completo. É evidente que nas partes que filmei já não tínhamos o Fonseca e Costa para fazer perguntas.
E como é que foi chamado à realização?
Foi um processo simples. Quando o Fonseca e Costa morreu, o Paulo Branco disse que queria terminar o filme e assim se fez. Já me disseram que conceptualmente é muito interessante a minha posição, mas, na verdade, é algo muito prático. Sabia o que faltava ao filme e, com a mesma equipa, conseguimos acabá-lo.
As conversas com o Fonseca e Costa devem ter ajudado muito.
Ajudaram, embora essas conversas fossem o forte dele! Aquilo começava e ia para sítios mais interessantes e não evidentes...
Importa realçar que tudo o que vemos da relação de Lisboa com a personagem principal não está no conto de Rubem Fonseca, que serve de base ao filme...
Pois, tudo o resto é o trabalho de guião do Mário Botequilha e do Fonseca e Costa. Esta pequena história deste escritor brasileiro é praticamente a história da Maria Pia, ou seja, apenas os últimos 30 minutos do filme.
A partir desta herança, chamemos-lhe assim, interessa-lhe prosseguir uma história de realizador?
Não sei.
Ainda é muito cedo?
As coisas passaram-se de uma maneira liminar e simples. O Paulo Branco propôs-me e eu aceitei, tendo trabalhado com o Mário Botequilha e o Pedro Madeira, que era o assistente de realização. Porém, posso dizer que tenho um projeto, sempre tive a tentação e o interesse de realizar, mesmo trabalhando sobretudo como montador. E a montagem é um trabalho que me permite estar muito próximo da construção do filme.
Um montador filma com a montagem na cabeça? É inevitável?
Pois... enquanto montador a matéria é o que está ali, o que chega. Mas um realizador também tem de ser montador.
Quantos dias acabou por filmar?
Oito! Isso equivale a 25/30 minutos do filme.
Será que é um filme triste, com uma ironia triste?
Diria antes irónico. Se calhar, salda algumas contas. Se calhar, ridiculariza algum do mundo que ele conheceu. E é também um filme que coloca alguns problemas de moral. Tem uma forte crítica a uma moral antiga e aos costumes antigos. Filma-se um Portugal muito beato e muito católico. E aí a ironia bate muito ferozmente. É uma coisa muito virulenta.
Apesar de ser um cineasta com uma marca autoral muito própria, Axilas é mais um filme em que se deixa provado que Fonseca e Costa conseguia fazer sempre um cinema imprevisível e com uma versatilidade inegável, não sente isso?
Tinha sempre essa capacidade de se reinventar e de se redescobrir. Depois, há sempre essa discussão sobre o cinema "comercial" e o que não era. Uma discussão que acho muito pouco interessante. A linhagem do Fonseca e Costa é a de quem acredita na história mas com a consciência de que há muitas maneiras de contar a história. Os filmes dele tinham uma visão quase poética também. E não é por acaso que neste a última palavra seja poesia e não morte.
Como se a poesia nos salvasse da morte...
A poesia permite defender-nos dessa coisa tão grosseira que é a morte.