As consequências de um impeachment sem consequências

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Para que serve um impeachment que não serve para nada? Para muito. Embora se conheçam desde já os resultados negativos deste processo de destituição que foi votado - quase - só por democratas na Câmara dos Representantes e em seguida irá ser barrado num Senado de maioria republicana, são várias as razões que o farão ressoar nas lições da história. Talvez mais, até, do que hoje antecipamos.

1. O processo contra Trump vai decorrer num ano eleitoral nos EUA - e todos sabemos como, nos EUA, os anos eleitorais são-no de facto, longos processos de primárias, pré-campanhas e campanhas.

Haverá lama atirada, mentiras e meias-verdades usadas como argumentos eleitorais. Mas, também, aprendemo-lo no último ato eleitoral de 2016, de um longo e prolongado período em que as técnicas de desinformação representarão um papel tão ou mais importante do que aquele que desempenhou nessa altura. Estas técnicas evoluíram nas redes sociais, sabemo-lo hoje, até se tornarem um subtexto incontrolável - uma fogueira a que este impeachment fornecerá mais achas, mais motivos.

2. O valor que estas campanhas atingirem junto de quem está mais propenso a acreditar nelas - e com muito pouca capacidade de defesa - veremos nos resultados. Será bastante difícil, em todo o caso, para os democratas desfazer a teia de um processo por definição complexo, e com argumentos bem mais simplistas do outro lado.

3. Esperemos, portanto, pelas mentiras que aí virão, mas dando como certa uma coisa: o tiro ao alvo jornalístico. Foi assim até agora, com Trump a identificar alguns media como parte da bolha que pretende combater - e a mensagem tem passado direitinho. Os media seguiram a cartilha de Trump e foram-lhe dando cada vez mais razão ao longo dos tempos - divididos como nunca. Os leitores, esses, tiveram uma de duas atitudes: ou se cansaram deles ou seguiram-nos segundo lhes amansavam o fio das suas opiniões.

4. Ou seja, este impeachment terá a particularidade de acentuar a principal característica da América dos nossos dias: mais dividida do que nunca. E que, como uma criança que vai atrás do choro, tende a persistir nesse caminho cada vez mais perigoso.

Agora é a vez do "eles contra nós", um papel em que o presidente é, digamos, um ator natural - veja-se a carta que escreveu a Nancy Pelosi, a porta-voz da Câmara dos Representantes. Trump aproveitará bem o guião, passeará pela passadeira da vitimização que os democratas lhe estenderam.

Isso não quer dizer que este processo não devesse andar para a frente - sobretudo por razões eleitorais. Seria a subversão do sistema. A subversão da América como a conhecemos e que, por detrás de todo o cinismo e imperfeição, tem ainda uma das mais controladas democracias do mundo - que os novos tempos estão claramente a pôr à prova.

5. O problema é exatamente o contrário e leva à terceira razão: a falta de gravidade a que chegou a política. Quando Donald Trump era apenas um arremedo de candidato, muitos foram os republicanos que se opuseram à ideia. Os mesmos que agora se reúnem à sua volta, por mais boçais que sejam as suas atitudes. O poder une, e o poder que se baseia em critérios pouco ortodoxos une de formas inesperadas - é isso que temos aprendido com Trump e com muitos outros líderes do mundo contemporâneo, que fogem aos cânones.

É verdade que nunca nenhum político americano caiu por um impeachment - Nixon demitiu-se antes que isso acontecesse. Mas o que aconteceu nessa altura, a união de republicanos e democratas contra um presidente que claramente quebrara as regras da civilidade democrática, não acontece agora - a dignidade já teve melhores dias.

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