As cartas secretas de Centeno

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Comecei por escrever sobre a carta que António Domingues enviara a Mário Centeno - notícia de ontem. Desenvolvi três parágrafos bem cheios e depois apaguei sem remorso. Não valiam um caracol. Lembrei-me do que Henry Kissinger escrevia na capa das primeiras versões dos relatórios que lhe apresentavam: você pode fazer melhor. Kissinger nem sequer lia esses documentos, não passava os olhos sequer por eles ao de leve, mas sabia que o sentido de exigência deve ser incentivado e que isso dá bons resultados.

A carta de Domingues a Centeno? O que a insistência partidária neste tema demonstra é apenas a falta de assunto no país. Não por falta de factos, não por ausência de problemas que se aproximam a grande velocidade - o BCE deixará de comprar dívida portuguesa no final deste ano -, mas talvez por preguiça mental e falta de sentido de exigência. O assunto Caixa Geral de Depósitos, tendo sido grave, revelando alguma ingenuidade de quem no governo o geriu, na verdade já passou, já não existe, é apenas a maneira mais fácil e rápida para tentar desgastar o ministro das Finanças e é essa a única intenção. Ainda por cima, uma intenção absurda e perigosa para os interesses nacionais.

Se há coisa de que Portugal não precisa nestes próximos meses - meses duríssimos do ponto de vista europeu e mundial - é de uma crise política grave envolvendo Mário Centeno. Podemos todos achar - e é verdade - que o controlo do défice público em 2016 se fez em parte devido aos cortes no investimento do Estado. Mas isso é falar de barriga cheia recusando compreender o contexto.

Confrontado com essa decisão difícil, não gastar, contrariar os ministros, recusar, chumbar, negar, mandar para trás e devolver à procedência os pedidos - sem que isso ganhasse dimensão noticiosa e provocasse as habituais birras ministeriais, até eventuais demissões -, Mário Centeno, um recém-chegado à política, um neófito, um aprendiz, segurou o barco e navegou em frente, evitando os escolhos.

Ele até fez mais. Não libertou logo o dinheiro da devolução salarial na função pública, manteve os euros no Terreiro do Paço, porque sabia que esse dinheiro seria gasto antes do tempo pelos ministros, obrigando depois as Finanças a abrir os cordões à bolsa nos últimos meses do ano, porque os salários têm sempre de ser pagos.

Assim - e não apenas com o corte no investimento - foi possível ter este défice de 2,3% do PIB que permite a Portugal entrar em 2017 com um pouco mais de confiança. Não vale a pena fazer uma estátua a Centeno, nem exagerar nos elogios, mas reconhecer o talento e o esforço, à esquerda ou à direita, é cumprir os mínimos jornalísticos.

(Os juros sobem então por que motivo? Porque a dívida pública continuou a trepar e não há sinais de que vá baixar com a rapidez como deveria; e porque os mercados já estão a colocar um preço no fim do programa de dívida pública, em dezembro deste ano, sendo certo que Portugal será o país mais afetado, já que a Grécia, para este efeito, não existe.)

Volto então ao assunto inicial. A carta secreta (uuuuu, que sexy) de António Domingues a Mário Centeno. Além de ter sido parcialmente revelada e cirurgicamente editada - é o que parece, é o que está à vista -, esta fixação neste ângulo noticioso não permite ao país olhar para o outro lado do problema, um lado tão ou mais importante, tão ou mais revelador do Portugal conflituoso em que nos fomos tornando e que nos impede de andar mais depressa.

Provavelmente o mais importante deste problema da Caixa é o seguinte: sem desmerecer a administração escolhida por Paulo Macedo, na realidade a anterior equipa era globalmente mais forte. Ter na CGD o antigo presidente do Dresdner Bank, um antigo presidente do Santander Central Hispano, além de empresários e gestores como Fernando Guedes (Sogrape), Paulo Pereira da Silva (Renova), Rui Ferreira (Unicer), Pedro Norton (ex-Impresa), já para não falar de Ângelo Paupério (Sonae) e de Leonor Beleza, os dois estupidamente chumbados pelo BCE - oh vã glória de mandar... -, todos estes cérebros juntos dariam à Caixa o que ela nunca teve: mundo, experiência nas empresas e nos negócios, capacidade para decidir melhor, independência partidária

Poderiam surgir problemas de transparência, apesar destes tenores serem não executivos; mas, caramba, que grande equipa aquela era. Era. Não será. Nunca mais voltará a ser. E ninguém liga uma pevide a tamanha oportunidade perdida. Continuemos então a alimentar a discussão à volta da carta secreta - que coisa ridícula e falsa - de Mário Centeno. Vamos longe, vamos.

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