As balas de Renzi continuam a atingir a política italiana
Matteo Renzi recebeu no Senado um sobrescrito com duas balas. No dia seguinte, quinta-feira, a crise política provocada pelo ex-primeiro-ministro reclamou uma segunda vítima: depois do chefe do governo de coligação, Giuseppe Conte, foi a vez do seu sucessor à frente do Partido Democrático (PD), Nicola Zingaretti. No campo simbólico seriam as balas referências às jogadas de Renzi? Facto é que dois anos e um dia depois de ter sido eleito secretário-geral do PD, com 66% dos votos, Zingaretti surpreendeu Itália ao anunciar o bater de porta, entre duras acusações aos membros do seu partido.
Nascido em 2007 de vários partidos e movimentos que fizeram parte da coligação Oliveira, o PD mantém-se hoje como então dividida nas correntes internas, uma das quais ainda se revê em Renzi, que em 2019 criou o seu próprio partido, Italia Viva, depois de se ter demitido em face da fracassada reforma constitucional e dos fracos resultados eleitorais nas eleições de 2018.
A mais recente crise política italiana, também com o selo de Renzi, quando retirou as duas ministras do seu pequeno partido Viva Italia do governo anterior, não só acabou com o governo de coligação do PD e do Movimento 5 Estrelas (M5E) como mergulhou os dois partidos numa crise. Zingaretti tentou acalmar as hostes dirigindo-se ao líder da Liga. "[Matteo] Salvini, descansa, o governo de Draghi é forte e sólido e irá prosseguir." Mas a política italiana é conhecida pela sua volatilidade. "Ainda tem de ser demonstrado que um país pode ser governado quando os dois principais partidos estão neste estado", escreveu o diretor do Domani, Stefano Feltri.
Ao sair, Zingaretti disse: "Tenho vergonha de no PD falarmos apenas de acusações e de primárias há 20 dias, quando em Itália a terceira vaga de covid está a explodir", disse o também presidente da região do Lácio. O anúncio de Zingaretti foi visto por parte dos observadores como uma bravata para reforçar a sua posição num partido com muitas correntes e divisões, ou como uma precipitação, pelo que alguns dirigentes disseram que iriam tentar convencê-lo a retroceder.
Zingaretti afastou esse cenário, bem como o de se candidatar à autarquia de Roma, tendo apenas confirmado que se manterá na política. O demissionário, de 55 anos, que se candidatou à liderança do PD recusando acordos de governação com o M5E, acabou por ser o principal artífice, com Giuseppe Conte, de uma aproximação das duas formações. Durante o seu mandato, o partido esteve no governo e recuperou parte das intenções de voto num sistema partidário estilhaçado pelas formações de extrema-direita Liga e Irmãos de Itália e pelo 5 Estrelas, que era um movimento antissistema.
Nestes anos em que a política italiana se faz nas redes sociais e na plataforma Rousseau, Zingaretti era o líder por excelência do tradicional modo de fazer política e de comunicá-la, além de representar a fação mais à esquerda do PD - chegou a ser comparado com o britânico Jeremy Corbyn -, com a missão de unir o partido. A sua personalidade recebeu o elogio de Giuseppe Conte, um "líder sólido e leal, que conseguiu partilhar, mesmo nos momentos mais críticos, a visão do bem maior da comunidade", e que em ano e meio de executivo com o PD, não se recorda de um único momento de tensão entre ambos.
As tensões estavam no interior do partido. Zingaretti foi duramente criticado por não ter incluído nenhuma mulher entre os candidatos ministeriais, algo que os partidos de direita fizeram. Outro fator de divergência profundo era o projeto de estabelecer uma aliança com o M5E, como a que se viveu no segundo governo Conte, nas próximas eleições locais. Uma parte do partido continua a olhar com desconfiança para o movimento fundado por Beppe Grillo, que no Parlamento Europeu poderá vir a sentar-se ao lado do PD no grupo dos socialistas e sociais-democratas.
"Em 2018 havia equidistância entre a Rússia, a China e os EUA e desconfiança em relação à Europa, agora há uma evolução. Mas quão autêntica é esta mudança e em que medida é oportunismo?", questiona o senador do PD Alessandro Alfieri ao Corriere della Sera.
No PD, da reunião convocada para os dias 13 e 14 deverá sair um líder provisório até à escolha de uma nova chefia. Perfilam-se como candidatos (também aqui não se descortinam mulheres) Andrea Orlando, ministro do Trabalho, na corrente de Zingaretti; Lorenzo Guerini, ministro da Defesa; Stefano Bonaccini, presidente da região Emília-Romanha; e Matteo Orfini, o rosto da oposição interna.
Já o M5E poderá ter encontrado uma solução para estancar a sangria de membros e inverter a tendência de perda: Giuseppe Conte tem a seu cargo o desenho de um projeto de "refundação" do movimento tendo como referência temporal 2050, segundo anunciou Beppe Grillo. O posto que Conte vai ter no M5E ainda está por definir.
O governo italiano decidiu adiar uma série de eleições previstas para o período entre o fim de março e junho, para uma data a especificar, entre 15 de setembro e 15 de outubro, devido à pandemia, anunciou o gabinete de Mario Draghi. A primeira eleição prevista, no dia 31 deste mês, limita-se às províncias de Siena e Arezzo, na Toscana, para escolher um deputado em resultado da saída do parlamento, a meio da legislatura, de um eleito do Partido Democrático, o ex-ministro Pier Carlo Padoan. Em abril deveriam disputar-se as regionais na Calábria. E em junho, as locais em 1200 autarquias, incluindo as presidências de grandes cidades como Roma, Milão, Nápoles, Turim e Bolonha. Numa altura em que o número de mortos por covid-19 se aproxima dos cem mil e há um aumento de transmissões do vírus, espera-se que as autoridades reforcem as restrições nos próximos dias.