As avozinhas que dão voz à América Latina
Nenhuma delas é precoce, já que começaram ambas a gravar quando andavam perto dos 40 anos. Mas nenhuma delas se esvai com a passagem das modas, porque assentaram praça em canções que são transversais ao tempo: Susana Baca, recém-chegada aos 73 anos, costuma ser apontada como a grande responsável pela revitalização e pela conservação da música peruana de influências africanas, um segmento muito particular que a levou - juntamente com o marido, o sociólogo Ricardo Pereira - a assumir pessoalmente recolhas, digressões, estudos e o ensino dessa tradição que ameaçava perder-se. Já Adriana Varela, agora com 65 anos, demorou a tornar público o seu talento que se espraia pelo tango, numa abordagem que ultrapassa os purismos formais e se relaciona primordialmente com a essência e a alma de uma música que, a par das mais verdadeiras, não conhece fim. Apesar do panorama de espetáculos latinos entre nós estar longe do satisfatório, quis a coincidência (ou melhor: um minifestival chamado Soy Loco Por Ti, América, que também inclui a cubana Yilian Cañizares, a 16, e o brasileiro Chico César, a 18) que quase se juntassem em palco estas duas mulheres de percursos longos e imaculados, capazes de exemplificar a diversidade, sem perda, das músicas da América Latina, independentemente das latitudes.
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Susana Baca já ganhou dois Grammies latinos, foi ministra da Cultura do seu país - de julho de 2010 a dezembro de 2011 - e acabou por dever boa parte do reconhecimento internacional à iniciativa da editora discográfica Luaka Bop, selo que pertence a David Byrne, que começou por publicar uma coletânea intitulada El Alma del Perú Negro, em que uma das cantoras - e, já agora, uma das conselheiras do projeto - era Susana. Pouco depois, Byrne faria questão de editar também alguns discos da peruana, já em nome próprio, de que sobressaem Eco de Sombras (2000) e Espíritu Vivo (2002), ainda hoje vistos como fundamentais na obra desta mulher que, como vimos, nunca se alheou das questões políticas e sociais do seu país. De resto, acabaria por ser eleita presidente da Comissão Interamericana de Cultura, ligada à OEA (Organização dos Estados Americanos), exercendo o cargo até 2013. Baca diria, para sintetizar essa presença nos meios de decisão, que "a recuperação da dignidade está muito ligada às políticas culturais". Para acrescentar: "Os políticos que têm a pretensão de dirigir os nossos países [da América Latina] devem perceber que, se não colocarem o investimento na cultura entre as prioridades, tudo aquilo que andam a prometer acabará por transformar-se numa enorme mentira. Não basta que profiram empolgados discursos eleitorais em defesa da cultura se, uma vez eleitos, reduzirem o orçamento do setor a uma percentagem ínfima, a uma verba tão baixa que só dá para pagar aos funcionários empregados no respetivo ministério...".
Também dona de ideias fortes, Adriana Varela conhece um percurso muito diferente. Trabalhou, até 1986, como terapeuta da fala, enquanto prosseguia os seus estudos em psicanálise e linguística. Musicalmente, formou-se muito perto do rock até viver a sua própria epifania com o tango. Começou por cantar num bar, onde foi descoberta por Roberto Goyeneche, um produtor e arranjador ligado ao tango. Lançou o seu primeiro disco, Tangos, em 1991, seguindo-se Maquillaje e Corazones Perversos, que lhe renderam, além do aplauso da crítica e do público, os seus primeiros prémios como intérprete. Desde cedo se percebeu que a uma voz grave, vivida, perfeitamente adequada às histórias e às emoções cantadas, Adriana somava uma vontade de assumir o papel de "todo-o-terreno" dentro do tango: de Gardel a Piazzolla, dos clássicos a autores inéditos, foi juntando um reportório que é hoje inconfundível e valioso, num trajeto que já contempla 15 álbuns e espetáculos em DVD, tal a dimensão invulgar que esta mulher alcança em palco.
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O mais recente sinal exterior de Adriana chama-se Adriana Varela y Piano e foi gravado em 2014, resultando de mais uma aventura: o facto de a cantora "dispensar" as guitarras, o violino e o bandoneon que habitualmente se associam ao tango, apresentando-se acompanhada em exclusivo pelo piano de Marcelo Macri. Nada que surpreenda por aí além, se pensarmos no que sobre ela deixou dito o escritor espanhol Manuel Vásquez Montalbán, depois de uma passagem pelo cabaret de "tango guerrilheiro" (expressão do criador de Pepe Carvalho), onde Adriana cantava: "O tango, que tem de sair do corpo por todas as suas portas, há que cantá-lo com todos os seis sentidos. Com ela, a emissão faz-se do centro do mundo, que é local que escolhe para estar de pé, sem se permitir devaneios ou coreografias, presença e voz como Piaf ou Chavela [Vargas], como uma sacerdotisa austera. Prova decisiva para qualquer intérprete de tango é assumir o reportório clássico como se estivesse a estreá-lo; algumas peças em particular traduzem o acerto ou o fracasso da abordagem. Aí, há que ver a Varela a cantar Muñeca Brava ou Volver, depois de as ter ouvido ainda criança e ao longo de toda a vida - saberás então que estás na presença da magia da continuação e da renovação, do encontro entre o património e a sua saudável modificação." Nada a acrescentar. A não ser a recomendação de que se assegure cedo o lugar para estas viagens, sempre em primeira classe.
concertos
Susana Baca, 15 de junho, 22.00
Adriana Varela, 17 de junho, 22.00
Palácio Pimenta (Museu da Cidade), Lisboa
Entrada livre, com lotação limitada.