Mal se ouviram os primeiros disparos no Nagorno-Karabakh, a 27 de setembro, reacendendo um conflito mais ou menos adormecido há quase três décadas, a Turquia assumiu sem rodeios o lado do Azerbaijão. Ancara apoia o objetivo azeri de retomar "as suas próprias terras" no Nagorno-Karabakh - disse o ministro da Defesa turco, Hulusi Akar, numa visita a Moscovo. E enquanto a Rússia, a França e os Estados Unidos multiplicavam apelos a um cessar-fogo imediato, Erdogan incentivava abertamente o presidente azeri, Ilham Aliyev, repetindo que a paz só seria possível quando todos os arménios tivessem abandonado "até ao último pedaço" o território azeri. Ao longo dos últimos meses a Turquia acelerou o fornecimento de equipamento e a assistência militar ao Azerbaijão. As autoridades arménias denunciaram a participação direta de soldados turcos no conflito, e a presença de mercenários sírios mobilizados pela Turquia para apoiar as forças azeris. A Turquia foi já várias vezes acusada de utilizar mercenários sírios em várias frentes, em particular a Líbia. "É claro que os mercenários sírios da Turquia se tornaram parte das ambições externas do país permitindo evitar mobilizar as próprias forças armadas turcas" - diz Noah Agily, um perito de Washington, citado pela Deutsche Welle. O envolvimento no conflito do Nagorno-Karabakh é apenas a mais recente das aventuras militares lançadas pela Turquia nos últimos anos numa área que se estende da Síria ao Mediterrâneo Oriental ou ao Cáucaso. A Turquia envolveu-se desde 2011 no conflito da Síria e ocupa de facto uma área no norte do país a pretexto do combate às milícias curdas da região. Empenhou-se diretamente no conflito líbio em socorro do GNA (Governo de Acordo Nacional) do primeiro ministro Fayez al-Serraj. Intensificou as ações contra o PKK no norte do Iraque e abriu bases militares no Qatar, no Iraque e na Somália. Ancara insiste ao mesmo tempo na exploração de gás natural, em águas reconhecidas pela comunidade internacional como pertencendo à Grécia e Chipre, numa ação apoiada por vasos de guerra turcos..Estas ações vêm coroar uma acentuada evolução da política externa turca desde a subida ao poder do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), de Recep Tayyip Erdogan, em 2002. Erdogan promoveu a imagem da Turquia como um país rodeado de atores hostis, e abandonado pelos seus aliados ocidentais. Ancara tende agora a desvalorizar as instâncias multilaterais e a diplomacia, a explorar laços alternativos com a Rússia e a China, e sobretudo a encorajar "uma política proativa baseada no uso da força militar preventivo fora das suas fronteiras" - observa Gonul Tol, perito em estudos turcos, na BBC. A Turquia tornou-se membro da NATO em 1952 e durante a Guerra Fria cumpriu a função de bastião do flanco leste da NATO e de um sólido aliado dos Estados Unidos. Ahmet Davutoglu, ministro dos Negócios Estrangeiros de 2009 a 2014, propôs-se arrancar o país dessa posição "lateral" e reposicionar a Turquia no papel de ator central na intersecção de várias regiões. Ao sabor da doutrina da "Profundidade Estratégica", Ancara iniciou uma política de reaproximações com a Grécia, a Síria, os Balcãs ou antigos estados soviéticos e de um renovado empenho no Médio Oriente e no mundo muçulmano. Uma aposta, em suma, naquilo a que Davutoglu chamou "o espaço geopolítico otomano", de que a Turquia se considera "legítima herdeira". Ora, assinala Joshua W. Walker, da LSE Ideas - "desde o final da Guerra Fria, as memórias do império (otomano) estão associadas antes de mais com os esforços para reposicionar a Turquia numa renovada luta entre o mundo "moderno" ocidental e um mundo muçulmano em ressurgimento centrado no Médio Oriente". O espetacular crescimento económico das últimas três décadas desempenhou um papel importante no desenvolvimento de laços económicos com os vizinhos da Turquia, permitindo a Ancara construir interdependências económicas com países hostis como a Síria e o Iraque e consolidar zonas de influência..Em junho de 2015, o AKP perdeu a sua maioria parlamentar pela primeira vez em mais de uma década devido ao crescimento do HDP (Partido Democrático do Povo), pró-curdo. Para recuperar a maioria do partido do governo, Erdogan formou uma aliança com os nacionalistas em torno de um programa de endurecimento face ao problema curdo. O apoio dos nacionalistas permitiu, por outro lado, ao presidente turco mudar o sistema parlamentar para um sistema presidencial que lhe garante vastíssimos poderes. A política de "zero problemas" com os vizinhos, baseada na diplomacia, no comércio e na cooperação cultural, defendida por Davutoglu, é coisa do passado. Ancara adota definitivamente uma "política assertiva, militarista e unilateralista" - sublinha o mesmo analista..A vasta purga de funcionários públicos suspeitos de ligações ao movimento do clérigo Fethullah Gülen, que Erdogan responsabilizou pela tentativa de golpe de 2016, fez 60 mil baixas nos quadros do aparelho do Estado, das Forças Armadas e de outras instituições. O vazio deixado pelas purgas foi preenchido com elementos de confiança de Erdogan e nacionalistas. A condução da política externa está doravante inteiramente nas mãos de Erdogan. O líder turco vai apostar no envolvimento direto em conflitos regionais para conquistar zonas de influência, ao mesmo tempo que procura capitalizar no plano doméstico a popularidade de iniciativas como o apoio ao Azerbaijão, dada a proximidade étnica e linguística entre turcos e azeris. "O objetivo de Erdogan é afirmar a Turquia como uma potência autárquica, capaz de exercer influência sobre os seus vizinhos, de ignorar quando necessário os parceiros ocidentais" - conclui Joshua W. Walker. O líder turco conta com argumentos de peso. A posição geográfica da Turquia "na confluência do Leste e do Oeste, ligando a Europa ao mundo árabe e muçulmano e, mais em concreto, a ponte entre os fornecedores de energia no Médio Oriente e na Ásia Central e os 500 milhões de consumidores da UE" representa um "importante trunfo estratégico" - nota Nicholas Kitchen, editor da mesma revista. O potencial militar turco representa outro argumento crucial. A Turquia tem a segunda força militar da NATO, depois dos EUA, com efetivos avaliados em 2015 em perto de 700 mil homens. O país desenvolveu ademais capacidades de defesa próprias com projetos em vários estádios de desenvolvimento, desde tanques e blindados a mísseis, diversos tipos de navios e drones. Este esforço sublinha o objetivo de "conseguir a autonomia e reduzir a sua dependência, em concreto dos aliados da NATO, em matéria de material militar", observa Asli Aydıntaşbaş, da ECFR.EU..Os resultados dessa política afiguram-se para já inconclusivos. A presença militar turca não logrou erradicar as forças das milícias curdas da fronteira com a Síria. O acordo marítimo de Ancara com Fayez al-Serraj e as ações musculadas de exploração de gás apenas produziu para já uma situação de alta tensão no Mediterrâneo Oriental, reações irritadas de vários aliados da Turquia na NATO, e a progressiva consolidação de uma espécie de "frente antiturca" na área. A iniciativa turca no Mediterrâneo gerou fortes reações da União Europeia. Paris e Berlim acusaram a Turquia de "provocações", a Alemanha agitou a ameaça de sanções e a França enviou unidades navais para o Mediterrâneo e assumiu claramente o lado da Grécia. A posição assumida por Ancara no conflito do Nagorno-Karabakh esteve à beira de criar uma crise na NATO. Vários membros da Aliança criticaram a Turquia e alinharam com a Rússia no apelo a um cessar-fogo. A França queixou-se mesmo de ações agressivas de navios turcos contra uma fragata francesa em junho último no Mediterrâneo Oriental. Numa reunião de ministros da Defesa da Aliança, em agosto, um responsável francês apelou a que o "problema turco" fosse colocado na agenda da NATO. O confronto entre a França e a Turquia assumiu novas proporções nos últimos dias quando Erdogan lançou um virulento ataque a Emmanuel Macron e ao endurecimento das medidas em França contra o islão radical depois do assassínio de um professor por ter mostrado os cartoons do profeta numa aula. A situação agravou-se ainda com a publicação no Charlie Hebdo de um cartoon satirizando o presidente turco. Erdogan fala de uma "doença de islamofobia" na Europa, e as posições do líder turco arrastaram já uma vaga de protesto e de apelos ao boicote de produtos franceses em vários países muçulmanos. No caso do Nagorno-Karabakh, os analistas repetem alertas para o risco de a Rússia e Turquia serem arrastados para o confronto. A Turquia como Israel têm uma estreita relação em matéria de defesa com o Azerbaijão. A Rússia tem um pacto de defesa com a Arménia. O vizinho Irão, que alberga também comunidades arménias e azeris, multiplica sinais de inquietação. Teerão ofereceu-se já para mediar no conflito, mas colocou para já o Exército em alerta e reforçou as suas defesas ao longo da fronteira com o Azerbaijão..Os interesses de Moscovo e de Ancara têm coincidido em áreas e momentos específicos. Putin e Erdogan têm em comum a hostilidade face ao Ocidente, e o negócio dos SS 400 terá dado particular satisfação aos dois líderes. Os dois países desenvolveram importantes laços económicos. Russos e turcos têm, ao mesmo tempo, interesses em confronto em várias frentes, no Mediterrâneo, no mar Negro ou no Cáucaso. Divide-os ainda todo um passado de hostilidade e uma profunda desconfiança. E boa parte dos entendimentos na Síria e noutras áreas serviram fundamentalmente para diluir situações de conflito eminente. Foi o caso em novembro de 2015 quando um Su-24 russo foi abatido por caças F-16 turcos na fronteira russo-turca. Em março deste ano, 33 soldados turcos foram mortos num ataque das forças de Assad, apoiadas pela Rússia, na área de Idlib. A Turquia retaliou com um ataque coordenado de um "enxame" de drones, numa ação espetacular que espantou os observadores e terá dado algumas dores de cabeça a Putin. O reforço do dispositivo militar no noroeste da Síria e a participação de tropas turcas em operações militares ao lado das forças antigovernamentais faz de Idlib outro ponto de alta tensão. No conflito do Nagorno-Karabakh, a Rússia tem tentado evitar tomar posições para não alienar nem a aliada Arménia nem o regime de Baku, com que mantém boas relações. Ora, "o apoio aberto da Turquia ao Azerbaijão é visto como um desafio a Moscovo e como um sinal da fraqueza da Rússia numa região onde exerceu considerável influência" - considera Asbed Kotchikian, da World Politic Review. Ancara juntou-lhe uma "provocação" declarada ao assinar, há uma semana, um acordo de cooperação militar com a Ucrânia, reforçando uma parceria de defesa vista como um esforço para contrabalançar o domínio russo na área do mar Negro. E o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, advertiu diretamente a Rússia para não se envolver militarmente no conflito. Segundo alguns analistas, a Turquia contará eventualmente, em caso de choque com a Rússia, com a capacidade de retaliação no norte da Síria, ou mesmo, em última análise, com o respaldo da NATO. Moscovo deu um primeiro sinal de reação mais musculada há duas semanas, ao anunciar exercícios militares no mar Cáspio, a norte de Baku. Mas, para já, a Rússia mantém uma reação contida e prudente, e insiste na via diplomática. Um delicado exercício de equilíbrio, e que não deixa de comportar riscos elevados para Moscovo, que se arrisca a perder o pé no conflito e a sua capacidade de influência na região..As opções de Recep Tayyip Erdogan continuam condicionadas por uma série de fatores domésticos. O presente turco está de algum modo refém dos seus aliados nacionalistas, adeptos de uma linha dura no plano externo, e pressionado pela crise económica e monetária, pelo descontentamento da população face à forma como governo tem gerido a pandemia, pela perda de terreno nas sondagens e pelo crescimento da oposição, não tendo grande margem de manobra. Há 15 dias, o CHP (Partido Popular Republicano), o maior partido de oposição, apelou a eleições antecipadas recebendo apoio da maior parte dos partidos. E, de acordo com a maior parte das sondagens, a coligação AKP-nacionalistas está a perder popularidade. A Turquia continua a ser um pilar indispensável da NATO e a posição estratégica do país garante a Erdogan considerável margem de manobra face às pressões dos aliados. Washington ameaçou a Turquia com sanções e retirou Ancara do programa do caça supersónico F-35 em reação à aquisição de mísseis S-400 à Rússia. Mas os EUA continuam a fornecer intelligence às forças turcas em Idlib, e a apoiar politicamente a ação turca. "Dentro de meio século (...), a Turquia emergirá como uma das mais fortes potências no mundo, velejando para grandes conquistas" - disse Erdogan em fevereiro deste ano. A Turquia "será coroada com vitórias, do Iraque à Síria, do Mediterrâneo a outras regiões". A Turquia continua a dispor de enormes recursos estratégicos. Mas as ambições neo-otomanas de Recep Tayyip Erdogan comportam, ao mesmo tempo, riscos consideráveis.
Mal se ouviram os primeiros disparos no Nagorno-Karabakh, a 27 de setembro, reacendendo um conflito mais ou menos adormecido há quase três décadas, a Turquia assumiu sem rodeios o lado do Azerbaijão. Ancara apoia o objetivo azeri de retomar "as suas próprias terras" no Nagorno-Karabakh - disse o ministro da Defesa turco, Hulusi Akar, numa visita a Moscovo. E enquanto a Rússia, a França e os Estados Unidos multiplicavam apelos a um cessar-fogo imediato, Erdogan incentivava abertamente o presidente azeri, Ilham Aliyev, repetindo que a paz só seria possível quando todos os arménios tivessem abandonado "até ao último pedaço" o território azeri. Ao longo dos últimos meses a Turquia acelerou o fornecimento de equipamento e a assistência militar ao Azerbaijão. As autoridades arménias denunciaram a participação direta de soldados turcos no conflito, e a presença de mercenários sírios mobilizados pela Turquia para apoiar as forças azeris. A Turquia foi já várias vezes acusada de utilizar mercenários sírios em várias frentes, em particular a Líbia. "É claro que os mercenários sírios da Turquia se tornaram parte das ambições externas do país permitindo evitar mobilizar as próprias forças armadas turcas" - diz Noah Agily, um perito de Washington, citado pela Deutsche Welle. O envolvimento no conflito do Nagorno-Karabakh é apenas a mais recente das aventuras militares lançadas pela Turquia nos últimos anos numa área que se estende da Síria ao Mediterrâneo Oriental ou ao Cáucaso. A Turquia envolveu-se desde 2011 no conflito da Síria e ocupa de facto uma área no norte do país a pretexto do combate às milícias curdas da região. Empenhou-se diretamente no conflito líbio em socorro do GNA (Governo de Acordo Nacional) do primeiro ministro Fayez al-Serraj. Intensificou as ações contra o PKK no norte do Iraque e abriu bases militares no Qatar, no Iraque e na Somália. Ancara insiste ao mesmo tempo na exploração de gás natural, em águas reconhecidas pela comunidade internacional como pertencendo à Grécia e Chipre, numa ação apoiada por vasos de guerra turcos..Estas ações vêm coroar uma acentuada evolução da política externa turca desde a subida ao poder do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), de Recep Tayyip Erdogan, em 2002. Erdogan promoveu a imagem da Turquia como um país rodeado de atores hostis, e abandonado pelos seus aliados ocidentais. Ancara tende agora a desvalorizar as instâncias multilaterais e a diplomacia, a explorar laços alternativos com a Rússia e a China, e sobretudo a encorajar "uma política proativa baseada no uso da força militar preventivo fora das suas fronteiras" - observa Gonul Tol, perito em estudos turcos, na BBC. A Turquia tornou-se membro da NATO em 1952 e durante a Guerra Fria cumpriu a função de bastião do flanco leste da NATO e de um sólido aliado dos Estados Unidos. Ahmet Davutoglu, ministro dos Negócios Estrangeiros de 2009 a 2014, propôs-se arrancar o país dessa posição "lateral" e reposicionar a Turquia no papel de ator central na intersecção de várias regiões. Ao sabor da doutrina da "Profundidade Estratégica", Ancara iniciou uma política de reaproximações com a Grécia, a Síria, os Balcãs ou antigos estados soviéticos e de um renovado empenho no Médio Oriente e no mundo muçulmano. Uma aposta, em suma, naquilo a que Davutoglu chamou "o espaço geopolítico otomano", de que a Turquia se considera "legítima herdeira". Ora, assinala Joshua W. Walker, da LSE Ideas - "desde o final da Guerra Fria, as memórias do império (otomano) estão associadas antes de mais com os esforços para reposicionar a Turquia numa renovada luta entre o mundo "moderno" ocidental e um mundo muçulmano em ressurgimento centrado no Médio Oriente". O espetacular crescimento económico das últimas três décadas desempenhou um papel importante no desenvolvimento de laços económicos com os vizinhos da Turquia, permitindo a Ancara construir interdependências económicas com países hostis como a Síria e o Iraque e consolidar zonas de influência..Em junho de 2015, o AKP perdeu a sua maioria parlamentar pela primeira vez em mais de uma década devido ao crescimento do HDP (Partido Democrático do Povo), pró-curdo. Para recuperar a maioria do partido do governo, Erdogan formou uma aliança com os nacionalistas em torno de um programa de endurecimento face ao problema curdo. O apoio dos nacionalistas permitiu, por outro lado, ao presidente turco mudar o sistema parlamentar para um sistema presidencial que lhe garante vastíssimos poderes. A política de "zero problemas" com os vizinhos, baseada na diplomacia, no comércio e na cooperação cultural, defendida por Davutoglu, é coisa do passado. Ancara adota definitivamente uma "política assertiva, militarista e unilateralista" - sublinha o mesmo analista..A vasta purga de funcionários públicos suspeitos de ligações ao movimento do clérigo Fethullah Gülen, que Erdogan responsabilizou pela tentativa de golpe de 2016, fez 60 mil baixas nos quadros do aparelho do Estado, das Forças Armadas e de outras instituições. O vazio deixado pelas purgas foi preenchido com elementos de confiança de Erdogan e nacionalistas. A condução da política externa está doravante inteiramente nas mãos de Erdogan. O líder turco vai apostar no envolvimento direto em conflitos regionais para conquistar zonas de influência, ao mesmo tempo que procura capitalizar no plano doméstico a popularidade de iniciativas como o apoio ao Azerbaijão, dada a proximidade étnica e linguística entre turcos e azeris. "O objetivo de Erdogan é afirmar a Turquia como uma potência autárquica, capaz de exercer influência sobre os seus vizinhos, de ignorar quando necessário os parceiros ocidentais" - conclui Joshua W. Walker. O líder turco conta com argumentos de peso. A posição geográfica da Turquia "na confluência do Leste e do Oeste, ligando a Europa ao mundo árabe e muçulmano e, mais em concreto, a ponte entre os fornecedores de energia no Médio Oriente e na Ásia Central e os 500 milhões de consumidores da UE" representa um "importante trunfo estratégico" - nota Nicholas Kitchen, editor da mesma revista. O potencial militar turco representa outro argumento crucial. A Turquia tem a segunda força militar da NATO, depois dos EUA, com efetivos avaliados em 2015 em perto de 700 mil homens. O país desenvolveu ademais capacidades de defesa próprias com projetos em vários estádios de desenvolvimento, desde tanques e blindados a mísseis, diversos tipos de navios e drones. Este esforço sublinha o objetivo de "conseguir a autonomia e reduzir a sua dependência, em concreto dos aliados da NATO, em matéria de material militar", observa Asli Aydıntaşbaş, da ECFR.EU..Os resultados dessa política afiguram-se para já inconclusivos. A presença militar turca não logrou erradicar as forças das milícias curdas da fronteira com a Síria. O acordo marítimo de Ancara com Fayez al-Serraj e as ações musculadas de exploração de gás apenas produziu para já uma situação de alta tensão no Mediterrâneo Oriental, reações irritadas de vários aliados da Turquia na NATO, e a progressiva consolidação de uma espécie de "frente antiturca" na área. A iniciativa turca no Mediterrâneo gerou fortes reações da União Europeia. Paris e Berlim acusaram a Turquia de "provocações", a Alemanha agitou a ameaça de sanções e a França enviou unidades navais para o Mediterrâneo e assumiu claramente o lado da Grécia. A posição assumida por Ancara no conflito do Nagorno-Karabakh esteve à beira de criar uma crise na NATO. Vários membros da Aliança criticaram a Turquia e alinharam com a Rússia no apelo a um cessar-fogo. A França queixou-se mesmo de ações agressivas de navios turcos contra uma fragata francesa em junho último no Mediterrâneo Oriental. Numa reunião de ministros da Defesa da Aliança, em agosto, um responsável francês apelou a que o "problema turco" fosse colocado na agenda da NATO. O confronto entre a França e a Turquia assumiu novas proporções nos últimos dias quando Erdogan lançou um virulento ataque a Emmanuel Macron e ao endurecimento das medidas em França contra o islão radical depois do assassínio de um professor por ter mostrado os cartoons do profeta numa aula. A situação agravou-se ainda com a publicação no Charlie Hebdo de um cartoon satirizando o presidente turco. Erdogan fala de uma "doença de islamofobia" na Europa, e as posições do líder turco arrastaram já uma vaga de protesto e de apelos ao boicote de produtos franceses em vários países muçulmanos. No caso do Nagorno-Karabakh, os analistas repetem alertas para o risco de a Rússia e Turquia serem arrastados para o confronto. A Turquia como Israel têm uma estreita relação em matéria de defesa com o Azerbaijão. A Rússia tem um pacto de defesa com a Arménia. O vizinho Irão, que alberga também comunidades arménias e azeris, multiplica sinais de inquietação. Teerão ofereceu-se já para mediar no conflito, mas colocou para já o Exército em alerta e reforçou as suas defesas ao longo da fronteira com o Azerbaijão..Os interesses de Moscovo e de Ancara têm coincidido em áreas e momentos específicos. Putin e Erdogan têm em comum a hostilidade face ao Ocidente, e o negócio dos SS 400 terá dado particular satisfação aos dois líderes. Os dois países desenvolveram importantes laços económicos. Russos e turcos têm, ao mesmo tempo, interesses em confronto em várias frentes, no Mediterrâneo, no mar Negro ou no Cáucaso. Divide-os ainda todo um passado de hostilidade e uma profunda desconfiança. E boa parte dos entendimentos na Síria e noutras áreas serviram fundamentalmente para diluir situações de conflito eminente. Foi o caso em novembro de 2015 quando um Su-24 russo foi abatido por caças F-16 turcos na fronteira russo-turca. Em março deste ano, 33 soldados turcos foram mortos num ataque das forças de Assad, apoiadas pela Rússia, na área de Idlib. A Turquia retaliou com um ataque coordenado de um "enxame" de drones, numa ação espetacular que espantou os observadores e terá dado algumas dores de cabeça a Putin. O reforço do dispositivo militar no noroeste da Síria e a participação de tropas turcas em operações militares ao lado das forças antigovernamentais faz de Idlib outro ponto de alta tensão. No conflito do Nagorno-Karabakh, a Rússia tem tentado evitar tomar posições para não alienar nem a aliada Arménia nem o regime de Baku, com que mantém boas relações. Ora, "o apoio aberto da Turquia ao Azerbaijão é visto como um desafio a Moscovo e como um sinal da fraqueza da Rússia numa região onde exerceu considerável influência" - considera Asbed Kotchikian, da World Politic Review. Ancara juntou-lhe uma "provocação" declarada ao assinar, há uma semana, um acordo de cooperação militar com a Ucrânia, reforçando uma parceria de defesa vista como um esforço para contrabalançar o domínio russo na área do mar Negro. E o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, advertiu diretamente a Rússia para não se envolver militarmente no conflito. Segundo alguns analistas, a Turquia contará eventualmente, em caso de choque com a Rússia, com a capacidade de retaliação no norte da Síria, ou mesmo, em última análise, com o respaldo da NATO. Moscovo deu um primeiro sinal de reação mais musculada há duas semanas, ao anunciar exercícios militares no mar Cáspio, a norte de Baku. Mas, para já, a Rússia mantém uma reação contida e prudente, e insiste na via diplomática. Um delicado exercício de equilíbrio, e que não deixa de comportar riscos elevados para Moscovo, que se arrisca a perder o pé no conflito e a sua capacidade de influência na região..As opções de Recep Tayyip Erdogan continuam condicionadas por uma série de fatores domésticos. O presente turco está de algum modo refém dos seus aliados nacionalistas, adeptos de uma linha dura no plano externo, e pressionado pela crise económica e monetária, pelo descontentamento da população face à forma como governo tem gerido a pandemia, pela perda de terreno nas sondagens e pelo crescimento da oposição, não tendo grande margem de manobra. Há 15 dias, o CHP (Partido Popular Republicano), o maior partido de oposição, apelou a eleições antecipadas recebendo apoio da maior parte dos partidos. E, de acordo com a maior parte das sondagens, a coligação AKP-nacionalistas está a perder popularidade. A Turquia continua a ser um pilar indispensável da NATO e a posição estratégica do país garante a Erdogan considerável margem de manobra face às pressões dos aliados. Washington ameaçou a Turquia com sanções e retirou Ancara do programa do caça supersónico F-35 em reação à aquisição de mísseis S-400 à Rússia. Mas os EUA continuam a fornecer intelligence às forças turcas em Idlib, e a apoiar politicamente a ação turca. "Dentro de meio século (...), a Turquia emergirá como uma das mais fortes potências no mundo, velejando para grandes conquistas" - disse Erdogan em fevereiro deste ano. A Turquia "será coroada com vitórias, do Iraque à Síria, do Mediterrâneo a outras regiões". A Turquia continua a dispor de enormes recursos estratégicos. Mas as ambições neo-otomanas de Recep Tayyip Erdogan comportam, ao mesmo tempo, riscos consideráveis.