As abelhas de Notre-Dame

A água a escorrer no bronze fez uma estranha reverberação, belíssima, como um lamento ou um pranto. Naquela noite, Notre-Dame chorou para o mundo.
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O primeiro alerta soou às 18.18. No ecrã do computador, a luz acendeu, urgente: Zone nef sacristie. Mas, na sacristia, nada havia de suspeito. O guarda começara a trabalhar ali há um par de dias, não sabia que o alarme de incêndios já tinha uns bons anos e que, muitas vezes, não indicava uma zona precisa da catedral. Também ninguém lhe dissera, ninguém o avisara. Além disso, ultimamente, desde que tinham começado as grandes obras de restauro do pináculo, tinha havido inúmeros falsos alarmes. Nada de grave, pensou.

Às 18.42, o alerta soou de novo. Estranho. Dois minutos depois, avisaram-no de que as chamas não vinham da sacristia, mas da cobertura, e já se viam lá fora, a grande distância. Subiu as escadas a correr, 300 degraus ofegantes. Abriu a porta, o inferno a seus olhos: a "floresta", como lhe chamavam, a estrutura do tecto composta por mais de 1300 vigas de carvalho entrelaçadas, muitas delas datadas do século XIII, estava a ser tragada por um fogo imenso.

Ligou para a brigada de incêndios, a arfar. Eram 18.48 de 15 de Abril de 2019, uma segunda-feira, o último dia de aulas antes das férias. Na Île de la Cité, os pais aglomeravam-se à porta das escolas, para buscar os filhos, a gritaria da praxe. Na nave da catedral, milhares de turistas ouviam as vésperas conduzidas pelo cónego Jean-Pierre Caveau com o auxílio da soprano Emmanuelle Campana. O padre iniciou a leitura do Salmo 27: "O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei?" Começava a Páscoa.

À noite, às 20.00 em ponto, o Presidente iria falar a um país mergulhado no caos. Uma revolta estranha, com pretensões indefinidas e cada vez mais ambiciosas, assolava França, de norte a sul. Durante 22 sábados consecutivos, cidadãos com coletes amarelos vinham a manifestar-se num crescendo de indignação e violência, que não cessou nem mesmo quando o governo cedeu à sua reivindicação principal, sobre preços de combustíveis. Que iria dizer o Presidente à nação? O rumor mais insistente garantia que Emmanuel Macron se preparava para anunciar a extinção da ENA, a École Nationale d"Administration, fundada por Charles de Gaulle em 1945, por muitos considerada o símbolo maior do elitismo e da sociedade de classes, a quintessência do pensée unique caduco e burguês.

No Eliseu, o Presidente acabara de gravar a sua alocução quando as televisões começaram a fervilhar com imagens dantescas da catedral em chamas, captadas por telemóveis de cidadãos anónimos e difundidas nas redes sociais à velocidade de segundos. A cerca de 20 quilómetros dali, no Palácio de Versalhes, uma audiência selecta, presidida pelo ministro da Cultura, Franck Riester, preparava-se para assistir à inauguração, após três anos de intensos trabalhos de restauro, dos magníficos aposentos que Luís XIV construíra para Madame de Maintenon, com quem se casara secretamente em 1683. Entre os presentes naquele final de tarde, Marie-Hélène Didier, conservadora dos Monumentos Históricos, responsável pelas obras religiosas de França, e Laurent Prades, director-geral da catedral de Notre-Dame de Paris. Os telemóveis começaram a tocar nos bolsos dos convidados, um dilúvio de chamadas e de mensagens. Nem houve tempo para abrir o champanhe.

Marie-Hélène saiu a correr para o carro, com uma mão a vasculhar a carteira à procura das chaves, outra com o telefone ao ouvido. Do outro lado da linha, Philippe Villeneuve, arquitecto-chefe dos Monumentos Históricos, com Notre-Dame a seu cargo. "Nessa noite, morri", confessou dias depois Philippe Villeneuve, versão moderna de Quasímodo, um homem que conhecia e amava a catedral desde criança, quando aí passava horas infindas a ouvir o lendário Pierre Cochereau a tocar num dos maiores órgãos do mundo, com cinco teclados, 111 registos e mais de sete mil tubos. A contemplação da austeridade serena do edifício, dirá mais tarde, foi o motivo que o levara a escolher o curso de Arquitectura.

Villeneuve encontrava-se na região de Charentes, no sudoeste de França, e quando Marie-Hélène ligou já sabia o que acontecera. Estava no carro, a caminho, a 180 km à hora, rumo à estação de comboio mais próxima, La Rochelle. Marie-Hélène, desgraçadamente, decidira regressar de Versalhes de automóvel, acabando por ficar aprisionada nos colossais engarrafamentos de Paris ao final da tarde. Sentada ao volante, encarcerada numa fila de trânsito quilométrica na Rive Droite, quase a chegar à Île de la Cité, observou, impotente e incrédula, a Notre-Dame a desfazer-se em labaredas mesmo diante dos seus olhos.

Mais avisado, Laurent Prades optara pelo transporte público: RER de Versalhes ao Musée d"Orsay, 55 minutos de angústia, e o resto do trajecto de bicicleta, a toda a brida. Prades não era apenas responsável pelos 60 funcionários da catedral; na qualidade de director-geral, só ele sabia onde se encontravam as cerca de cem chaves que davam passagem aos lugares mais recônditos do templo. Era também ele, e mais uns poucos, dois ou três, que sabia os códigos electrónicos de acesso aos pontos mais sensíveis, o Tesouro e a Capela das Sete Dores, a oitava do deambulatório, a única dedicada permanentemente ao culto e à oração, uma jóia situada ao fundo de Notre-Dame. Era aí, só aí, que Laurent Prades queria chegar.

Enquanto isso, Jean-Claude Gallet reunia os seus homens e dirigia as operações. General de três estrelas, veterano do Afeganistão, Gallet integrava a brigada de sapadores-bombeiros de Paris praticamente desde que saíra de Saint-Cyr. Criada por Napoleão em 1811, a brigada orgulhava-se de ser uma das melhores e mais exigentes do mundo, composta por elementos com uma média de idades de 27 anos (muito inferior à dos bombeiros de outras capitais, acima dos 40), homens e mulheres de estatura baixa ou mediana, extremamente fortes e ágeis, sujeitos a treinos diários extenuantes. Com o auxílio do segundo-comandante, o general Jean-Marie Gontier, e do tenente-coronel Gabriel Plus, Gallet sabia que, naquela altura, a cobertura de madeira, velha de oito séculos, estava perdida para sempre. Agora, havia que combater o fogo em todas as frentes, sem tréguas. Ordenou que uma força avançada subisse as escadas em caracol até à cornija, a 44 metros de altura, para circundar o fogo e atacá-lo pelos flancos e, em simultâneo, criou uma dupla cortina de água, cruzada no sentido norte-sul, entre o telhado e as torres, para baixar a temperatura da atmosfera e para proteger os campanários onde repousavam dez gigantescos sinos de bronze, com várias toneladas de peso. Se o incêndio alastrasse às estruturas de madeira com centenas de anos que servem de suporte aos sinos, estes ruiriam e, com o seu peso, fariam colapsar as torres em poucos minutos. Com a queda de uma das torres, a seguir cairia a outra e, logo depois, a fachada, o resto da catedral e, muito provavelmente, vários edifícios vizinhos.

Cá fora, a multidão aguardava, no mais absoluto silêncio. Espontaneamente, muitos ajoelharam-se, murmurando preces inaudíveis. De súbito, quando faltavam três minutos para aos oito da noite, ouviu-se um estrondo sinistro, aterrador, de madeira a ser esmagada: o pináculo de Notre-Dame, com 750 toneladas, desabou em segundos, à vista do mundo, por entre os gritos e as lágrimas de milhares de seres humanos. A queda teve um tal impacto sobre o edifício que escancarou de par em par as grandes portas da fachada, gigantescas, pesadíssimas.

O Presidente e a mulher chegaram pouco depois ao local. A comunicação ao país fora cancelada, obviamente, pois durante aquelas horas ninguém queria saber para nada da revolta dos gilets-jaunes ou das misérias do quotidiano político. Na prefeitura da polícia, situada do outro lado da praça, improvisou-se uma sala de crise com as mais altas autoridades: Macron e Brigitte, o primeiro-ministro, o ministro da Cultura, o governo em peso, o presidente da Assembleia Nacional, o prefeito da polícia de Paris, o procurador-geral, a presidente da câmara, Anne Hidalgo, e o arcebispo da cidade, monsenhor Michel Aupetit, acompanhado pelo vigário-geral, Benoist de Sinety, e pelo reitor da catedral, monsenhor Patrick Chauvet.

Laurent Prades, entretanto, conseguira chegar ao seu destino. Largou a bicicleta no passeio, atravessou a correr duas barreiras policiais exibindo a sua identificação, acercou-se de Notre-Dame praticamente ao mesmo tempo que o capelão dos bombeiros, Jean-Marc Fournier, também ele um veterano do Afeganistão. Muitos técnicos dos Monumentos Históricos tinham-se igualmente precipitado para o local, com o fito exclusivo de salvar as milhares de obras de arte que Notre-Dame acumulara em séculos de existência. Equipada com capacetes dos bombeiros, a brigada dos historiadores dividiu-se em dois grupos: o primeiro, acompanhado pelos homens do general Gallet, embrenhou-se no interior da igreja, entre as chamas e o fumo, para ir à sacristia, ao tesouro, aos lugares escondidos, resgatar as peças mais belas e mais sagradas; o segundo formou uma cadeia humana que ia recebendo os objectos e os transportava de mão em mão da sacristia até ao jardim, onde uns prefabricados instalados há pouco pelas obras de restauro serviram de abrigo de emergência, sob forte vigilância da força policial de elite, a Brigade de Recherche et d'Intervention, especializada em sequestros e crimes violentos.

Marie-Hélène Didier, que vencera finalmente os engarrafamentos de Paris, já se encontrava também no interior da igreja. Conhecendo como poucos os segredos de Notre-Dame, caminhou na penumbra, com a água dos bombeiros a chegar-lhe aos tornozelos, em direcção à sacristia. Aí repousava a túnica que, segundo a lenda, São Luís envergava quando trouxe de Bizâncio a coroa de espinhos de Cristo, comprada por uma fortuna nos alvores do século XIII. Marie-Hélène resgatou a túnica real e também o látego com que o rei-santo se flagelava. Enquanto isso, os seus colegas partiam vitrinas, rebentavam cadeados, faziam soar o que restava das sirenes de alarme, em busca de mais relíquias.

Com uma coragem tremenda, Laurent Prades e o capelão Fournier chegaram entretanto onde queriam, bem ao fundo da catedral. A Capela das Sete Dores. Prades olhou para a enorme cratera aberta no tecto de Notre-Dame e, por entre chamas e cinzas, vislumbrou o céu azul de Paris. No interior da capela, protegida por um vidro duplo à prova de bala, repousava em silêncio a coroa de espinhos de São Luís e um pedaço da cruz onde Cristo morrera. Antes de Prades e Fournier lá chegarem, alguns bombeiros tinham já forçado o cadeado, em vão. Só Prades tinha a chave, faltava-lhe apenas digitar os códigos de acesso. Na trepidação do momento, não se lembrava bem da combinação correcta. Tentou um número - disparou uma mensagem de erro. Depois outro número, falhou de novo. Dali não conseguia fazer chamadas, mas podia enviar sms aos dois sacristãos que conheciam a chave secreta. Às 08.42, um deles enviou-lhe uma mensagem com o código certo. Prades e o capelão abriram a vitrina, com mil cuidados, retiraram a coroa de espinhos e o pedaço da cruz do almofadão de veludo escarlate em que repousavam. Depois, por entre os escombros e o fumo, regressaram à sacristia. Missão cumprida: salvara-se a coroa de espinhos de Jesus, a maior relíquia de toda a cristandade.

Nas imediações da catedral, o gabinete da maire colocara vários camiões para transportar os tesouros para o Louvre. Marie-Hélène Didier subiu a um deles, levando consigo a coroa de espinhos e a túnica de São Luís. Mais à noite, de madrugada, findos os trabalhos de resgate, os técnicos dos Monumentos Históricos reuniram-se em silêncio, no átrio do Louvre, a contemplar os objectos que haviam salvo, dezenas ou centenas de preciosidades. À vista de tudo aquilo, e acusando a pressão desse dia, Marie-Hélène chorou convulsivamente.

Por volta das nove da noite, a polícia enviou drones para o ar, que captaram imagens da progressão do incêndio, rápida e descontrolada. Transmitidas em tempo real para um ecrã gigante da sala de crise, as imagens formavam um cenário dantesco, apocalíptico, que fez muitos dos presentes levar as mãos à boca, em reacção de espanto. À vista de tudo aquilo, e acusando a pressão desse dia, o reitor Chauvet tombou para o lado, desmaiado.

Um dos bombeiros suspeitou, logo às oito da noite, que o fogo começava a alastrar à torre norte. Pediu autorização para ir lá acima, subiu os 380 graus da galeria superior, entre temperaturas insuportáveis. Rodeou a base da torre, viu uma pequena porta, partiu o cadeado e abriu-a. Quase foi devorado pelas chamas. Avisou o posto de comando, aos gritos. Quarenta e quatro metros abaixo, o general Gallet empalideceu. A torre norte tinha oito sinos, dispostos por andares, aos pares. Todos eles com nomes próprios, de homens e de mulheres: Gabriel, Anne-Geneviève, Denis, Marcel, Etienne, Benoît-Josep, Maurice, Jean-Marie. No conjunto, mais de 16 toneladas, sustentadas por uma estrutura de madeira dos tempos da Idade Média. Se o conjunto desabasse, depois cairia a torre sul, a dos sinos portentosos: Marie, com seis toneladas, e Emmanuel, o gigante, com treze.

Chegara o tempo das grandes decisões. Jean-Claude Gallet mandou reunir 55 homens do GRIMP, o Groupe de Reconnaissance de d'Intervention en Milieux Périlleux, uma unidade de elite especializada em actuar em meios hostis e adversos, e ordenou que fosse colocado a postos o robô Colossus, a pièce de résistance da brigada. um drone terrestre com mais de meia tonelada de peso, capaz de disparar um jacto de três mil litros de água por minuto. Para o general, só um ataque frontal e de proximidade à torre norte seria capaz de salvar Notre-Dame. Expôs o seu plano ao gabinete de crise, uma voz perguntou-lhe se estava consciente dos riscos, Gallet respondeu que sim. Macron mandou avançar.

O que então fizeram aqueles homens do GRIMP ainda hoje parece inimaginável. Subiram a escadaria em caracol que dá acesso à plataforma que une as torres da igreja e dividiram-se em dois grupos: enquanto uns colocavam cordas e aprestos para descerem pela fachada em caso de emergência, outros esticavam mangueiras até lá abaixo. Um pequeno grupo entrou na torre norte, a caminhar literalmente no meio das chamas. Em baixo, a imensa cratera do telhado destruído. O tenente que comandava esse grupo por pouco não se despenhou no vazio, quando as velhas escadas de madeira da torre cederam ao seu peso. A partir de um ponto dificílimo, começaram a aspergir os sinos escaldantes. Um outro pequeno grupo, de apenas três homens, fez o mesmo na torre sul, apontando os jactos de água para os dois gigantes, Emmanuel e a sua irmã, Marie. Emmanuel, um dos maiores sinos do mundo, ali erguido em 1686, só tangido em ocasiões solenes (tocou 84 vezes quando João Paulo II morreu aos 84 anos), começou a soar ao ser banhado pelas águas poderosas. Foi mandado construir pelo Rei-Sol, Luís XIV, o marido secreto de Madame de Maintenon, a dos aposentos magníficos do Palácio de Versalhes. Foi ele que lhe deu o nome, Emmanuel, e agora, séculos volvidos, um outro Emmanuel aguardava em transe, a escassas centenas de metros, as notícias vindas lá de cima. O fá sustenido do grande sino ensurdeceu os bombeiros que o aspergiam, ecoou na praça, quilómetro zero da nação, e foi morrer lá longe, bem longe, onde a multidão cantava ave-marias de esperança. A água a escorrer no bronze fez uma estranha reverberação, belíssima, como um lamento ou um pranto. Naquela noite, Notre-Dame chorou para o mundo.

Enquanto o general Gallet fazia um ponto de situação aos jornalistas, sem direito a perguntas, o arcebispo Aupetit escreveu um apelo no Twitter. Pediu a todos os padres de Paris que rezassem, que rezassem muito, e que tocassem os sinos das suas igrejas, para espalhar palavra. Então, os sinos começaram a tocar em todas as torres da cidade e em todos os cantos de França, de norte a sul. Tocavam pelos seus irmãos em chamas, pelos bombeiros em perigo de vida, pelos que salvaram os tesouros únicos, pela alma de uma nação inteira.

Jean-Claude Gallet mandou avançar o Colossus.

(continua)

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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