As 33 barrigas de aluguer que foram obrigadas a criar os filhos dos clientes

Camboja. Junho de 2018. Num apartamento, junto à capital, Phnom Penh, a polícia encontrou 33 mulheres, barrigas de aluguer. A prática tinha sido proibida no país em novembro de 2016 e todas foram detidas. O tribunal decidiu que teriam de cuidar das crianças até aos 18 anos, senão cumpriam uma pena de 20 anos de cadeia.
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Thilda, Neth, Bopha, Va-Tei e tantos outros nomes de mulheres que dizem ter sido apanhadas de surpresa pela polícia por não saberem que estavam a infringir a lei. Todas eram barrigas de aluguer de clientes estrangeiros, desde chineses, a norte-americanos, a nepaleses e holandeses.

A maioria até já tinha dado à luz outros bebés de clientes, mas o negócio das barrigas de aluguer começou a ser investigado pelas autoridades cambojanas depois de este ter disparado, devido à proibição da prática na china, na Índia, na Tailândia e no Nepal.

As mulheres foram contactadas por uma agência que andava de aldeia em aldeia a selecionar as que tinham perfil para se tornarem candidatas a barrigas de aluguer de clientes estrangeiros.

Thilda, de 20 e poucos anos, era a primeira vez que estava grávida. É casada com um mecânico, vive numa vila fora de Phonm Penh, e ganha muito pouco. O marido também. Queriam constituir a sua própria família mas não conseguiam, e acharam que quando a agência se deslocou à sua região que seria uma boa oportunidade para conseguir ganhar dinheiro e concretizar o sonho de terem um filho dos dois. Inscreveu-se e foi aceite.

Thilda receberia 10 mil dólares (cerca de 8800 euros) para ter a criança. Foi levada a uma clínica, onde lhe implantaram um óvulo fecundado por um casal chinês, mas quando ficou grávida, já esta prática tinha sido proibida no país há mais de um ano e com penas que podem chegar aos 20 anos de prisão. Thilda alegou não saber. "Se soubesse que era ilegal, nunca o teria feito", disse à BBC News Brasil, que este domingo publica um trabalho sobre a história destas mulheres.

Depois de engravidar, Thilda foi levada da sua aldeia para uma residência em Russey Keo, um bairro de luxo na capital Phnom Penh. Ali se encontrou com outras 32 mulheres, que se distribuíam pelos vários quartos que existiam. No entanto, estavam cinco mulheres em cada um, e eram tão pequenos que quase "não conseguíamos andar", contou ainda. Era ali que eram cuidadas e aguardavam o momento do parto para serem levadas para uma clínica.

Mas em junho de 2018, a polícia encontrou o apartamento, deteve os funcionários da agência e todas as mulheres que ali estavam, menos uma de nacionalidade tailandesa, que foi extradita para o seu país.

Quatro meses depois de ter sido detida, a jovem começou com contrações e foi levada ao hospital. Ela confessa que até estava ansiosa para ver o seu rosto. No fundo, comentou, "era o primeiro filho."

Três dias depois do nascimento do bebé, Thilda foi visitada pelos pais biológicos, um casal chinês. "O pai segurou o bebé e chorou, como se estivesse de coração partido. Eu senti muita pena dele", disse. O homem esteve uns 20 minutos com o bebé, depois juntou-se à mulher que se encontrava do lado de fora do berçário. O encontro foi tão rápido que não trocaram contactos, nunca mais se viram. Thilda tinha de aguardar com o bebé no hospital-prisão a decisão das autoridades judiciais.

Dois meses depois do nascimento, chegou a decisão. Thilda e o bebé podiam deixar o hospital-prisão, mas com uma condição: não poderia entregar a criança aos pais biológicos que a contrataram como barriga de aluguer, ficando obrigada a cuidar da criança até aos 18 anos. Caso contrário, teria que cumprir uma pena de 20 anos de cadeia pela prática do crime de barriga de aluguer.

Liang Bo, presidente da agência de fertilidade e gestação de aluguer chinesa Shenzhou Zhongai, explicou à BBC News que a proibição das barrigas de aluguer coincidiu também com o fim da política do filho único na China, o que trouxe muitos problemas a quem gostaria de ter mais que um filho e já não podia, devido à idade. Daí ter havido uma corrida às mães do Camboja.

"Nós ajudamos não apenas pais chineses, mas também americanos, canadianos, tailandeses, japoneses, nepaleses. Temos até entre os nossos clientes um casal russo com sida, que teve um filho graças às barrigas de aluguer da nossa agência", disse.

Contudo, Liang Bo garante que deixou de recorrer ao Camboja desde que a prática foi proibida. Diz também que o caso das 33 grávidas está ligado a uma empresa pequena. "Há muitas, umas 500 a 600, que surgiram nos últimos dois a três anos no país e que, às vezes, só têm uma pessoa por detrás", justifica.

Na noite da prisão destas 33 mulheres, Liang Bo conta que recebeu telefonemas de casais chineses desesperados que tentavam, sem sucesso, falar com os seus agentes cambojanos. "É uma perda terrível para as pessoas que queriam ter filhos. É provável que cada casal tenha pago mais de 70 mil dólares (mais de 61 mil euros).

O pior de tudo é que os seus filhos nasceram e serão criados até aos 18 anos por outra família. A vice-ministra do interior do Camboja, Chou Bun Eng, confirma que alguns pais biológicos conseguiram chegar às mães de aluguer. Contudo, estas são a ser acompanhadas pelas autoridades.

"Se quiséssemos prender os pais biológicos, poderíamos fazê-lo, mas não queremos. Só o faremos se tentarem levar as crianças para fora do país", acrescenta.

Não há nada que impeça os pais biológicos de darem apoio financeiro às mães de aluguer para criar as crianças até aos 18 anos, altura em que poderão decidir se querem ficar no Camboja ou ir viver com os pais biológicos.

Chou Bun Eng argumentou à BBC News que o Camboja proibiu a gestação através de barrigas de aluguer por se ter tornado numa forma de tráfico humano. "Os pais biológicos negociam o preço no útero. Não se importam com a criança, que são tratadas como bens. Se as crianças nascem com algum tipo de deficiência, o preço cai ou são abandonadas. E, às vezes, a criança é vendida a outra pessoa."

A reportagem conta que todas as mulheres contactadas ficaram com o bebé, em troca da pena de prisão, mas o dinheiro que já tinham recebido pela gestação permitiu-lhes mudar de vida.

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