Arundhati Roy: "É estúpido não ter medo"

A escritora Arundhati Roy está em Portugal para participar no Festival Internacional de Cultura de Cascais. Em entrevista ao DN, fala do seu novo romance e nega um discurso anti-Índia.
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O segundo romance da escritora indiana Arundhati Roy não está assim tão distante do velho O Deus das Pequenas Coisas, mesmo que entretanto tenham passado duas décadas. Se esse livro venceu o Prémio Booker em 1997, o mais recente, O Ministério da Felicidade Suprema, já foi anunciado estar na lista dos mais sérios candidatos (13 autores) e poderá integrar a short-list deste ano do mesmo galardão a ser conhecida na próxima terça-feira. O novo romance, garante a escritora, não é uma alternativa pensada para contestar a situação política e social na Índia, antes foi nascendo ao longo de vários anos até exigir ser escrito. Quanto ao método de escrita, Arundhati Roy tanto obedece a um plano fixo como deixa entrar todo o tipo de histórias na narrativa: "Não obedeço a uma regra de princípio, meio e fim na escrita de um livro, os episódios vão caindo e eu vou continuando sempre a escrever."

Quando recebeu em 1997 o Prémio Booker foi considerada o rosto da nova Índia. Agora com este novo romance o que será?

Eu nunca disse que era o rosto na nova Índia, pelo contrário, pretenderam que o fosse. Ao receber o prémio fui capa de muitas revistas e, ao mesmo tempo, o governo de direita que chegou ao poder fez testes nucleares, portanto se eu não o negasse seria vista como uma sua apoiante. Foi então que escrevi o meu primeiro ensaio político e imediatamente deixei de ser o rosto da nova Índia. Também não sei bem o que é essa nova Índia, porque debaixo de uma capa muito fina a velha Índia continua a existir. É sobre isso que escrevo há vinte anos, mesmo que a nova elite não aprecie o que faço.

A grande questão é o facto de terem passado 20 anos entre os dois livros. Porquê este regresso ao fim de tanto tempo?

A minha ficção não é um produto que se faça rápido ou para consumo, pelo contrário, resulta da construção de um universo que necessita de muito tempo e de experiência. Não tinha pressa nem queria publicar um novo livro só porque costuma ser assim. Não escrevo só porque as pessoas questionam este intervalo de tempo entre livros.

O anterior romance foi muito aclamado. Como será com este?

Aviso que não sou uma grande leitora das recensões... O Deus das Pequenas Coisas, no entanto, não foi assim tão unânime e houve muitos críticos e leitores que não percebiam a sua estrutura. Também considero que quando se escreve de forma séria não é fácil recolher no início uma mesma opinião de que um livro é bom.

E com este o que se vai passar...

Mesmo que tenha boa crítica, ninguém vai compreender completamente este livro se não o ler quatro vezes pelo menos. Qualquer crítico, mesmo que diga bem, vai perder muito se não o fizer. É como uma cidade submersa, a que é preciso mergulhar por várias vezes para se a conhecer.

Pelo que sei, não gosta muito da parte da revisão. Como é que sugere que o leiam quatro vezes?

Não é bem assim, o que acontece é que não avanço muito na escrita e depois volto atrás para editar. Como escrevo de forma muito lenta vou fazendo logo a revisão, além de que não escrevo com princípio, meio e fim. Como a estrutura é muito importante para mim, necessito de a encontrar.

Como cria a estrutura? Costuma planificar ou é sem organização prévia?

São as duas formas, por isso preciso de muito tempo. É uma combinação de controlo e liberdade.

Neste romance faz questão de espelhar muitas questões políticas e sociais polémicas na Índia. Escreveu um segundo livro para divulgar essa sua militância?

Não é só neste, pois o anterior já era um livro muito político ao retratar uma família com o coração partido. Este é sobre muitos mais corações partidos e que só se curam após morrerem, enterrados nas campas. Se quisesse escrever sobre causas sociais iria fazê-lo sob a forma de ensaio político, porque um romance deve manipular-se.

Já agora, porque começa e termina o romance num cemitério?

Agora, na Índia, as campas estão cheias de vida. Em Caxemira, os mortos estão mais vivos do que os próprios vivos. Alguém me perguntava recentemente se o que eu estava a escrever não era realismo mágico, não é a realidade. [Roy mostra uma fotografia da capa do livro, que tirou de uma campa.]

Deste livro depreende-se que a Índia é um caos. Concorda?

Visto de fora sim, mas a sociedade indiana vive de acordo com os seus deuses e a sua etnicidade, afinal só 5% casam fora da sua casta.

Cria uma personagem hermafrodita que é a parte mais intrigante do romance. Foi para ter um grande início?

Anjum é uma personagem e não apenas uma hijra [declarada masculina à nascença e, posteriormente, um terceiro género] - e tem o mesmo valor das outras. Ela é que é forte e não se define apenas pelo género, pois quando é vítima do massacre de Gujarate não é pela sua condição mas por ser muçulmana, mesmo que escape por ser uma hijra. Aliás, todas as personagens vivem na fio da navalha, seja de género ou de outras situações, como a casta ou a nacionalidade.

Caxemira, cuja independência defende, está sempre presente. É o único cenário possível?

A ideia do que é um país torna-se muito importante e Caxemira repete essa pergunta constantemente. Para mim, Caxemira é uma das grandes questões morais da Índia, que um dia a pode destruir. Este livro é mais sobre a Índia na totalidade e sobre todas as pessoas que não aceitam o que se faz a alguns a nível de direitos humanos.

Após escrever um livro destes não receia voltar a ser acusada de um discurso anti-Índia?

Não receio, mas é muito estúpido não ter medo porque se vive um tempo muito perigoso na Índia. Enquanto escrevia dizia para mim: escreve o que queres. Depois, guarda-o na gaveta e não publiques. Mas o ego da escritora não o permitiu e o que fiz foi correr um risco, evitando fazer lançamentos no país mas apenas no resto do mundo. E a sua leitura também me protege.

Tem uma personagem que se assume terrorista. Como vê as notícias constantes de atentados?

Não há apenas um género de terrorismo mas muitos e na Índia todos os dias há notícias sobre linchamentos de pessoas e violações de mulheres. Muito do livro retrata como se cria o rosto para o nosso inimigo, e no mundo fala-se muito do terrorismo islâmico mas quando vemos quais são os países e regimes que são atacados nunca são os islâmicos. Temos de estar preocupados, mas é preciso compreender como começou tudo e o que está a acontecer. Há muita violência na Índia, a polícia prende e mata pessoas, em Caxemira existe a mais densa ocupação militar e ninguém sabe se volta a casa.

Pode dizer-se que este é o seu retrato do país e que permite ouvir a verdadeira voz da Índia?

A minha questão é que não sei o que é Índia? Todos querem falar em seu nome e o que este romance tem são essas muitas vozes, frequentemente contraditórias. Ainda há dois dias um jornalista polaco disse que o livro era sobre a Índia mas que o lera como se fosse sobre a Polónia. É, portanto, sobre seres humanos.

É ficção ou ensaio também?

Não compreendo essas categorias, porque há histórias - como a de Caxemira - que só se podem acreditar que são reais a nível da ficção. Todos sabem de certas situações, mas não existem provas dos massacres. A ficção é a verdadeira realidade e se pudesse dizer o que pretendo num ensaio não o faria sob romance. Esta é a única forma de o fazer e o meu desafio foi incluir muitas personagens e pensar-se que sentimos a vida de uma cidade no todo em vez de poucas pessoas. Queria que a ficção refletisse sobre todas as questões e não sobre algumas e contar o máximo de posições e opiniões possíveis.

Foi fácil encontrar a voz para este livro?

Há muitas vozes, mas foi um prazer ver que se aproximavam de mim e das condições que me punham. A indústria editorial quer sempre que se conte tudo em poucas frases, temperadas com várias situações, como se fosse uma forma de domesticar a escrita. Este livro não pode ser definido como sendo sobre castas, racismo, Caxemira... Não, é o ar que respiramos e o que faz a nossa vida, porque ela não se divide em compartimentos. Não quis que fosse um produto sem uma personalidade própria, como se resultasse das normas de um curso de escrita criativa.

Receou vir a ser como Harper Lee que - em vida - era uma escritora de um romance só?

Essa questão não me importava, não é o meu currículo que está em causa. Ou tenho um livro para escrever ou não, aliás há cerca de dez anos que o dizia e ninguém queria acreditar que estivesse a fazer.

O Deus das Pequenas Coisas destruiu a sua vida?

Posso garantir que alterou a minha vida, isso sim, mas não foi só esse livro, também tudo o que escrevi depois e a minha atividade militante. Eu não consigo viver uma situação em que a noção de progresso é apenas uma, ou de outras situações, mesmo que seja essa a realidade que vivemos na Índia.

Porque continua a viver em Nova Deli com tantas contrariedades?

Porque é lá que vivo. Sou uma árvore que pertence ali, com raízes e amores profundos, e onde tenho uma comunidade. É mais fácil viver nessa comunidade de pessoas porque não sou capaz de fazer uma vida isolada e num lugar que desconheço. Estou ligada a muitas coisas lá, mesmo que de forma não patriótica.

Ver programação completa do Festival Internacional de Cultura de Cascais em www.fic.leya.com

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