arranjinhocosta.pt
António Costa pode dizer que fez a parte dele. O primeiro-ministro faz sempre a parte dele. Faz sempre o que é humana e politicamente possível. Foi assim no estranho affaire Caixa Geral de Depósitos-Domingues. A lei mudou para evitar a apresentação da declaração de rendimentos e de património, o Parlamento é que implodiu o acordo e o gestor de repente ficou sem chão e foi para casa com as mãos a abanar. Agora no assunto taxa social única e salário mínimo está a acontecer o mesmo. O governo fechou um acordo com os patrões e os sindicatos para baixar a TSU e subir o ordenado mínimo - uma opção economicamente discutível -, mas o Parlamento trocou as voltas ao tema e não quis saber de compromisso nenhum de concertação social.
Tudo isto é espantoso. Por um lado, o governo fechou um negócio com sindicatos e patrões sem ter a força para o fazer. Não tinha o apoio de partido nenhum na Assembleia da República e nem sequer abordou o PSD para tentar uma saída qualquer, por inesperada e exótica que ela fosse. Por outro lado, de repente parece que a concertação social passou a ser o alfa e o ómega da democracia portuguesa, o sítio onde tudo o que é de relevante acontece, onde tudo se decide, deixando os restos à Assembleia da República, isto é, o papel de cenário virtual ou centro de dia para os deputados trocarem umas generalidades.
Tudo isto é muito esquisito, mas é-o ainda mais porque António Costa é primeiro-ministro por uma só razão: ele perdeu nas urnas, não conseguiu os votos de que precisava, mas ganhou legitimamente no Parlamento o apoio indispensável. Portanto, desvalorizar a Assembleia da República é não apenas arriscado e imprudente mas também politicamente incompreensível perante o contexto deste governo. No entanto, por duas vezes em menos de um mês o primeiro-ministro tentou um arranjinho à margem do centro da democracia e por duas vezes falhou desgraçadamente - e ainda bem.
Mas há mais. A redução da taxa social única foi aprovada em Conselho de Ministro eletrónico. Quando ouvi e li esta expressão pela primeira vez, ela soou-me um pouco estranha, mas admito que inicialmente até me caiu bem. É aquela coisa moderninha: tudo o que é eletrónico deve ser bom, quase magnífico e superlativo, é o futuro aqui, não vale a pena um tipo preocupar-se muito ou até aborrecer-se, deve sim congratular-se com a chegada dos bites e dos bytes à política lusitana. E depois, de repente, subitamente, percebi que não é bem assim.
Um Conselho de Ministros eletrónico é aquele em que não há reunião nenhuma entre ministros. Ninguém argumenta coisa alguma ou exige explicações seja de que espécie for. Não se procura sequer chegar a consenso algum, ele está preestabelecido, em certo sentido ele está prefabricado, pré-aceite, é sempre em frente e sem curvas. Basta carregar no botão. Em vez da discussão democrática e aberta - à antiga: cara a cara, pessoalmente - segue um e-mail da Presidência do Conselho de Ministros dirigido a todos os ministros e talvez com os chefes de gabinete em cc e outros em bcc, para que nada se perca e siga rapidamente (tudo sempre a abrir) para o Palácio de Belém.
Será isto? Pode ser que não. Talvez seja uma rede interna do governo, ultrassofisticada e superprotegida de ataques informáticos maliciosos, uma rede capaz de construir esta magnífica democracia virtual tipo Silicon Valley, que dispensa os ministros e facilita, agiliza, apressa as operações. Oh, como estávamos necessitados disto. Um governo eletrónico e muito simplex. Como esta coisa, a evidente falta de debate entre o corpo que forma o governo, nos tranquiliza imensamente. Claro, claro, o assunto TSU já fora até abordado em encontros ministeriais anteriores e há certamente cobertura legal e pareceres em fartura.
Pois eu acho tudo um arranjinho facilitador e facilitista. Desvalorizar o Parlamento e o Conselho de Ministros parece-me uma péssima prática política, mas foi isto que aconteceu no último mês e meio. Felizmente - para o governo - Passos Coelho embrulha todas as críticas naquele seu azedume eleitoral muito particular que não lhe passa e até já coalhou, e então o país segue em frente, não lhe liga nenhuma, nem percebe o risco de certos métodos. Temos um governo em fast forward. Ninguém o apanha. Onde será que ele vai embater?