Arquivista com Descartes debaixo do chapéu da razão

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Em As Minhas Noites com Descartes, quis apresentar um filósofo, mas, no fundo, sonhou com um homem que fez a transição da filosofia medieval, saltando sobre a renascentista, para a Idade Moderna. É assim que vê o seu livro?

Pode ser visto assim. Descartes fez, de facto, essa transição, demonstrada, entre outras, pela frase "Tornar-se senhor e possuidor da natureza." Aí reside a essência da passagem da Idade Média para a Idade Moderna. O homem passa a agir sobre a natureza - no sentido de tudo o que não é o ser humano -, e por isso a dominá-la.

Quis, ao escrever este livro, tornar Descartes mais humano?

Mais sensível, sim. Ensinei Descartes no secundário e, cada vez que o apresentei, apercebi-me de que os alunos tinham dificuldade em entender a sua filosofia, escrita num francês difícil de ler por alunos do século XX. Fiquei sempre com a sensação de que não havia conseguido expor a sua mensagem. Quis, então, com este livro, torná-lo mais mais próximo de nós. Daí a criação de uma personagem um pouco onírica, estranha.

O seu livro define-se pela negação não é uma biografia tout court; não pode considerar-se uma ficção no sentido tradicional, nem apenas ensaio filosófico. Dir-se-ia a fusão de tudo isso...

É precisamente o que diz. Quis transmitir também a estranheza de um homem que se tornou num clássico, reconhecido pela proposição Penso, logo existo, a única para ele verdadeira, porque confirmada pela dúvida cartesiana. Ao duvidar, pressupomos que existimos. Toda a gente sabe isto de cor, tão bem como a tabuada. Mas tem-se deixado de lado a verdadeira mensagem de Descartes o pensamento de liberdade como fundamento da nossa relação com o universo; a aventura da construção do mundo pelo pensamento.

Era um ser prudente, Descartes, o homem da unidade do saber fundada na unidade da razão....

Na vida, sim, foi um homem prudente, tendo em atenção que, no seu tempo, se vivia a guerra na Europa. É preciso ver que, enquanto esteve em França, Henrique IV abandona o protestantismo pelo catolicismo. Como filósofo, Descartes tinha a consciência de que tinha de ser aceite pelas autoridades religiosas da época. Acaba por fixar residência na Holanda, país de maior tolerância filosófica e religiosa, ao mesmo tempo que conquistava um certo isolamento. Queria viver tranquilo, rejeitava o que a vida em sociedade podia ter de constrangedor, detestava submeter-se. Tentou fazer o seu trabalho como matemático e filósofo debaixo do chapéu da razão, dizendo "Progrido mascarado." Não recusava, no entanto, o debate, a discussão, como a correspondência o demonstra.

Mas a prudência não oprimia a sua audácia espiritual?

Sim, Descartes teve a audácia de saber que o existir se ligava apenas ao seu pensamento. Comprovando a existência de Deus, provou que o mundo existe. Algo de difícil compreensão para o cidadão comum. Para quê provar que o mundo existe, pois se ele está aí?

Descartes soube também defender-se após a condenação de Galileu...

Queimou alguns dos seus livros que partilhavam do mesmo estado de espírito. Mas ainda escreveu o Tratado do Mundo. Renunciou, graças à sua natureza prudente, à publicação da obra para não entrar em conflito directo com a Igreja.

Mas o Deus de Descartes não tem nada a ver, nas palavras de Pascal, seu contemporâneo, com o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, com o Deus judaico-cristão. É o autor das verdades geométricas, da ordem do mundo?

O Deus de Descartes é, a meu ver, o pensamento no estado puro; o que faz existir a ordem do mundo. O grande geómetra.

O filósofo do Discurso do Método não acreditava, como Platão, que todo o discurso escrito pressupõe jogo... Mas o seu livro passa por aí, ou não?

No meu livro há jogo, na filosofia de Descartes não. Ele próprio, numa carta à princesa Elisabeth da Boémia, diz que uma das regras que prosseguiu nos seus estudos foi a de dedicar poucas horas por dia aos pensamentos, aconselhando-a mesmo a praticar a indolência. Tentei abordá-lo desse ponto de vista não há que filosofar demasiado... Ao contrário dele, não procuro a verdade, mas verdades, não me situo no campo da filosofia. Faço literatura! Espantoso que um homem como ele, um ser da universalidade da razão, tenha feito a sua descoberta fundamental, a ideia do método, mediante a consideração do processo matemático, com base numa iluminação. Talvez essa seja a grande contradição de Descartes, ele que nunca foi como Pascal.

De que modo procurou o homem?

Investiguei. Tive o privilégio de ter como professora uma grande especialista de Descartes, Geneviève Rodis-Lewis, a autora de uma biografia de renome. Não quis fazer discursos sobre a filosofia cartesiana, procurei os aspectos mais sensíveis do homem por meio do sonho. O mesmo que ficou honrado com o convite da rainha Cristina da Suécia e aceitou expatriar-se num país frio. O mesmo que se vestiu para a conhecer como para uma cerimónia, com sapatos bicudos e luvas.

Por que motivo lhe chamou o homem do porto e não do rio, pela fixidez do seu pensamento?

Homem do porto porque procurava pontos fixos. Descartes é o homem que deseja ter certezas.Tem uma, essencial, o seu próprio pensamento, o resto são deduções levadas a cabo pelo método. Para ele, o ideal seria que tudo se pudesse deduzir geometricamente no mundo, tornando-o redutível à geometria. Essa é a sua concepção de um espírito livre. Não estamos perante alguém que caminha lentamente, que capta pormenores, mas que procura resolver materialmente todas as dificuldades. Quer demonstrar tudo como um modelo de máquina pode explicar o movimento. Chega a evocar os "espíritos animais", produzidos por uma matéria viva capaz de transmitir os movimentos mais rápidos pelos quais se animam os órgãos dos sentidos, nervos e músculos.

Um "jardim à francesa", Descartes?

Quioto, por onde a arquivista que é protagonista do meu livro viaja, tem jardins sublimes, selvagens, pequenos espaços com pontes, lagos, verdura... Descartes é o jardim à francesa. Jardim geométrico.

Sereno, o "nosso filósofo"?

Alguém que, para apreciar a vida, defendia que não podia deixar-se levar nem pela tristeza nem pelos grandes prazeres. Um pouco como Montaigne, filósofo e homem do seu tempo, que reflectiu sobre a forma de viver na "mediocridade", defendendo o justo meio e uma existência afastada dos excessos.

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