Arquitectura perdeu um modernista em estado puro
Foi o arquitecto que melhor traduziu em Portugal as premissas modernistas da Carta de Atenas. Luz e sombra, relação interior-exterior, adaptabilidade do edifício ao meio envolvente face ao programa a que se destinava, de tudo isso se fazia o traço de Ruy Jervis Athouguia, falecido sexta-feira à noite, no Hospital Pulido Valente, aos 89 anos.
O Museu e a Sede da Fundação Gulbenkian (1959/69), que concebeu com Pedro Cid e Alberto Pessoa, e que o Ippar considerou monumento nacional - o primeiro do século XX - são testemunho dessa bem conseguida síntese racionalista, com raízes nas abordagens distintas de autores como Mies van der Rohe ou Le Corbusier.
Nascido em 1917, em Macau, Ruy Athouguia veio ainda criança para Portugal e foi um dos discípulos de Carlos Ramos na Faculdade de Belas Artes do Porto, onde se diplomou em Arquitectura, em 1948.
De regresso a Lisboa, iniciou no ano seguinte o projecto do Bairro das Estacas, em Alvalade, em parceria com Sebastião Formosinho Sanchez. Um conjunto de habitação económica concluído em 1955, que revolucionou o entendimento do urbanismo na capital, ao fazer assentar os compridos blocos horizontais sobre pilotis ("estacas", portanto). Subvertendo, assim, o tradicional esquema de organização por praças e ruas ao "estender" o jardim por debaixo dos blocos (também eles sem frente nem traseiras, todos voltados para o exterior). Graças a esta obra, em 1954 recebeu o Prémio da Bienal de São Paulo.
Foi igualmente em Alvalade, onde em 1960 conceberia com Fernando Silva a Praça de Santo António, que Ruy Athouguia construiu o Edifício Roma e aplicou a racionalidade da linguagem moderna a três estabelecimentos de ensino: as escolas primárias do Bairro de São Miguel (1949-53) e Teixeira de Pascoaes (1956-61), e o Liceu Padre António Vieira (1969-65), enorme corpo horizontal a que se acede subindo rampas. Mais uma vez, a exposição solar e a vivência do exterior a partir do interior foram eixos determinantes.
Em Cascais, local que elegeu para viver, assinou a Casa Sande e Castro e a Torre do Infante, outro bloco habitacional. Em Abrantes, foi responsável pelo projecto final do Cine-Teatro de São Pedro.
Fiel aos princípios enunciados pelo Modernismo, não procurou conciliá-los com a especificidade portuguesa ou com uma certa função ideológica da arquitectura, como fizeram Fernando Távora, Nuno Portas ou Álvaro Siza, pelo que o seu papel só voltaria a ser reconhecido pelas gerações mais jovens.
A exposição monográfica de 2003, comissariada pelos arquitectos Ricardo Carvalho e Joana Vilhena no Palácio Galveias, no âmbito do Ano Nacional da Arquitectura, deu a Ruy Athouguia o prémio da Associação Internacional dos Críticos de Arte/Ministério da Cultura 2004.
O espólio do arquitecto está depositado no Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa desde 2001, após a derrocada do palácio do Bairro Alto onde tinha atelier. O seu corpo foi ontem sepultado no Cemitério de Cascais.