Armin Hary, o primeiro Bolt do atletismo que a Alemanha esqueceu

O primeiro atleta a fazer dez segundos nos cem metros é o único alemão campeão olímpico na distância. Foi acusado de batota e nunca foi reconhecido no seu país. Aos 82 anos, quer vender as medalhas para ter um bom resto de vida.
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O queniano Eliud Kipchoge quebrou recentemente a barreira das duas horas na maratona. Um feito que muitos consideraram impensável e sobre-humano, apesar de a marca não ter sido homologada porque foi alcançada mediante condições especiais. Mas este é daqueles feitos que entram na história do atletismo. Um dos primeiros a desafiar os limites humanos foi Armin Hary, que pode ser considerado o primeiro atleta supersónico dos cem metros planos.

Este alemão nascido em 1937 na cidade de Quierschied, foi o primeiro a correr o hectómetro em dez segundos. Tinha apenas 23 anos e teve de sobreviver a condições dificílimas durante a infância e a adolescência. Talvez por isso, numa entrevista ao jornal Die Welt, tenha admitido que nessa altura "odiava a Alemanha". E aos 82 anos não esconde a mágoa de não ser reconhecido como um dos heróis do atletismo do seu país, afinal foi o único alemão a vencer o ouro olímpico nos cem metros.

Um filho da guerra

A infância foi passada no meio do horror nazi da Segunda Guerra Mundial, período durante o qual a alimentação era deficiente. Na adolescência dividiu o tempo entre a escola e a remoção de entulho, até que aos 15 anos nasceu em Armin o sonho de brilhar no atletismo, depois de ter lido um livro do pai, em que estavam descritos os feitos do americano Jesse Owens. Quis imitá-lo.

Já trabalhava como mecânico de precisão quando começou a sua aventura no atletismo. Deixava o trabalho às 17.00 e ia diretamente para o treino. Todos os dias corria quatro quilómetros pelo bosque, já noite cerrada, e, quando estava mais frio, ficava no corredor de casa onde treinava as partidas: fazia 40 partidas por dia, cinco dias por semana. Uma obsessão que o iria levar longe.

Depressa se tornou o melhor atleta da sua província, Sarre, que participou como território autónomo nos Jogos Olímpicos de Helsínquia, em 1952, devido a uma disputa entre a Alemanha e a França pela posse daquela região. Só que o sonho de ir aos Jogos de Melbourne (1956) ruiu quando Sarre foi reintegrado na Alemanha, pois o recordista alemão era Manfred Germar (10,3 segundos). Começou uma nova luta de Hary. Tinha de destroná-lo.

Igualou a marca de Germar nos Europeus de Estocolmo (1958), com o rival a acusá-lo de batota na partida. Hary era um rebelde e os dirigentes alemães olhavam-no com desprezo, o que fez crescer nele a aversão ao seu país. Foi então para os Estados Unidos, onde foi submetido a uma cirurgia para debelar uma rotura nas fibras musculares de uma perna. Ficou melhor do que nunca.

E a 6 de setembro de 1958 mostrou ao mundo todo o seu poder, em Friedrichshafen, cidade do sul da Alemanha nas margens do lago Constança. Fez dez segundos, mas os juízes cronometraram com tempos diferentes: dez e 9,9 segundos. Prevaleceram os dez segundos, mas a marca não foi homologada.

Recorde repetido em uma hora

Para os que não acreditaram no feito, Hary repetiu-o a 21 de junho de 1960. Só que no final da corrida os juízes anunciaram que a partida dos blocos tinha sido irregular. Após uma hora de protestos, foi decidido repetir a prova... outra vez dez segundos. Agora não havia dúvidas, Armin Hary era o homem mais rápido do mundo. Faltava-lhe a glória de ser campeão olímpico.

"Tinha de vencer, por mim, mas também para mostrar aos críticos e aos dirigentes", assumiu ao Die Welt. Em agosto de 1960, nos Jogos de Roma, após uma falsa partida, Hary ficava à beira da desclassificação e por isso largou com mais... calma. Venceu com 10,2 segundos e cumpriu o sonho olímpico. A essa medalha juntou, algumas horas mais tarde, outra de dez centímetros de diâmetro e um de grossura de ouro puro, prometida pelo imperador japonês Hirohito ao primeiro homem a fazer dez segundos nos cem metros. Foi-lhe entregue na Aldeia Olímpica, às 03.30, em segredo. "O valor da medalha era contra as regras do amadorismo olímpico", explicou.

Adeus às pistas aos 23 anos

Dos dirigentes alemães não ouviu uma palavra. "Ninguém veio abraçar-me ou dar-me os parabéns. Zero sentimentos, porque tinha desfeito todas as mentiras que disseram sobre mim", disse, numa referência às acusações de batota de que foi alvo, mas não só. Na cerimónia do pódio dos Jogos de 1960 surgiu com um ténis Adidas e outro Puma, marcas concorrentes e rivais, depois de os irmãos Dassler se terem zangado e um deles ter deixado a Adidas (empresa da família) para fundar a Puma. Armin sempre negou que tivesse assinado contratos publicitários, que eram proibidos na altura.

Em Roma ainda ajudou a Alemanha a conquistar o ouro na estafeta 4x100. Mas a sua carreira acabou meses depois. Foi suspenso por um ano, por alegados problemas com as despesas enquanto esteve nos Jogos, além de ter exigido um cachet para participar numa corrida.

Aos 23 anos decidiu deixar as pistas. "Corri ao mais alto nível durante três anos, mas já estava no auge da minha carreira. Se na altura houvesse o dinheiro que há agora teria continuado", admitiu, garantindo que com as condições que existem atualmente "teria sido capaz" de se bater com Usain Bolt, o homem mais rápido de sempre com 9,58.

Esquecido pelo atletismo alemão, Armin Hary revelou a intenção de vender as sapatilhas e as medalhas a um colecionador americano. "Não quero que, quando morrer, essas peças acabem num antiquário", assumiu, frisando que esse dinheiro lhe pode permitir ter um melhor final de vida. "Sabe o que recebi pela medalha de ouro olímpica? Nada mais do que um aperto de mão. A minha vida continuou como se nada tivesse acontecido."

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