Armando Martins: uma coleção que sonhou um museu

O presidente do conselho de administração do grupo Fibeira é também colecionador de arte. Foi essa sua faceta que a fundação ARCO distingue na próxima terça-feira com o prémio "A" al Coleccionismo. No próximo ano o seu Museu de Arte Contemporânea deverá abrir as portas em Lisboa
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Quando o seu Museu de Arte Contemporânea abrir, antes de tudo estará o quadro, um abstrato pintado por Rogério Ribeiro, que custou 56 contos ao rapaz de 25 anos que, em 1974, ganhava "18 ou 20 contos", e que o pendurou na parede nua de um apartamento praticamente sem mobília, só com almofadas no chão, nas torres de Alfragide. Armando Martins senta-se agora no seu gabinete no último piso do Atrium Saldanha, em Lisboa. É presidente do conselho de administração da Fibeira, grupo gestor de participações sociais que trabalha em imobiliária, hotelaria, e serviços.

Em mais de quatro décadas, a sua coleção cresceu para cerca de 400 obras, em que se contam artistas como José Malhoa, Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso, José Pedro Croft, Rui Chafes, Marina Abramovic, Thomas Struth, ou Michael Biberstein. Na terça-feira, o engenheiro será um dos galardoados com o prémio "A" al Coleccionismo da Fundação ARCO, que no dia seguinte começa a sua Feira de Arte Contemporânea de Madrid.

Quanto ao museu, Armando Martins espera que este possa abrir portas ainda no final do próximo ano. Faz parte de um projeto para o Palácio dos Condes da Ribeira Grande, na Rua da Junqueira, Lisboa. O palácio, antigo Liceu Rainha Dona Amélia, será transformado parte em hotel, de 64 quartos, parte em museu. No rés-do-chão do palácio será exibida a exposição permanente, composta por obras da coleção de Armando Martins. A exposição temporária estará noutro edifício ainda por construir, que terá entre 1600 e 1800 m2. Da capela do palácio, futura parte do museu, quer fazer um lugar para tertúlias e concertos noturnos.

"Está ali naquela parede, eu estive a brincar com cores, tipo menino da escola primária, para escolher uma." O desenho da fachada do palácio repete-se quatro vezes numa parede do gabinete, pintado de cores diferentes. Armando Martins haveria de escolher uma espécie de salmão.

"Há uma linha de condução"

Quando lhe perguntamos o quê ou quem o fez aproximar-se da arte, responde: "Não sei, foi da vida. Não tenho bem a noção da origem destas ideias que eu tenho sobre arte. Não sei se isto é transportado para os edifícios que vou fazendo, se há aqui alguma inspiração." É, portanto, um percurso solitário o daquele cuja coleção é um tesouro escondido. Nunca a tinha mostrado até a ARCO Lisboa aparecer, e o diretor, Carlos Urroz, lhe pedir para receber alguns colecionadores estrangeiros. Algumas das suas peças, sob curadoria do seu filho Duarte, foram mostradas então no Palácio do Correio-Mor, do século XVIII, em Loures, integrado num terreno de cerca de 140 hectares para que o grupo Fibeira tem um projeto "a cinco, dez anos" que inclui hotelaria, habitação, escritórios, um campus de investigação ligado à saúde com um hospital privado ainda por definir, uma parte museológica, e um centro hípico.

Então lá estava, no exterior do palácio, Torcia, do italiano Gilberto Zorio, uma das obras pioneiras da arte povera e uma das histórias mais marcantes para o engenheiro. "Definiu-se que esta peça seria para um museu: a galeria queria vender ao museu, o artista queria vender ao museu. Tive de lhes garantir que ia abrir um museu, foi uma guerra grande. Isto foi negociado em Basel. Toda a peça tem uma história até a gente chegar lá", explica. E é essa história que lhe interessa, mais do que a do artista com a peça. Nesta, em torno de Torcia, Armando Martins estava na corrida com "um museu suíço, outro italiano, e um privado belga". E porque a queria tanto? "É uma peça que me diz bastante. São tubos de construção, e para mim que sou da construção... Isto de colecionar é um pouco uma droga. A gente compra peças sem saber como é que as vai pagar depois. E quando se embica numa isto começa tudo a juntar e a fazer a tal linha de condução."

O que o move em direção às obras, neste seu "hobby, como outros jogam golfe, ou gostam de ter carros sofisticados", é, argumenta, "o prazer que se tem de olhar para uma peça de arte, interagir com ela, viver um pouco com ela. Agora não tenho feito tanto isso porque enveredei sobretudo para escultura e instalações, mas quando comprava pintura pura e dura expunha a obra numa sala lá de casa, e quando chegava a casa fica a olhar para ela, a contemplá-la durante um tempo."

É por causa da "tal linha de condução" que o colecionador sempre foi relutante em mostrar as suas obras num contexto que não seja aquele que imaginou para elas, o do museu. "Isto são apontamentos que são capazes de não fazerem sentido expostos assim soltos. É um todo." No ano passado, na ARCO, receberam cerca de "150 pessoas" no Palácio do Correio-Mor, entre eles um grupo de diretores de museus suíços. Desde aí, já teve vários pedidos, entre eles o de um grupo de diretores de museus austríacos. "Eu disse: "Não, isto está tudo fechado num armazém.""

Hoje tem obras emprestadas ao Museu Reina Sofía, em Madrid, para a exposição Pessoa. Toda a arte é uma forma de literatura. Cedeu outras para as recentes grandes exposições dedicadas a Almada Negreiros, na Gulbenkian e no Museu Nacional de Soares dos Reis, e de Amadeo de Souza-Cardoso, no Museu do Chiado e no Soares dos Reis. Essas obras vêm de uma altura em que Armando Martins comprava sobretudo pintura portuguesa. "Nos anos 90 entrei na arte internacional contemporânea, e foi a partir daí que a coleção divergiu um pouco", nela começaram a predominar as esculturas e as instalações.

"Éramos do contra"

A meio da conversa, enquanto falava da sua amizade com Jorge de Brito, com quem teve "uma relação muito próxima nos últimos anos dele", Armando Martins refere Maio 68, obra de Maria Helena Vieira da Silva que comprou a esse grande colecionador de arte que vendeu à Gulbenkian uma parte das suas obras, importantíssimas para a Coleção Moderna daquela instituição. Perguntamos-lhe pelo maio de 68, de que neste ano se comemoram 50 anos.

"Eu entrei para a universidade, para o [Instituto Superior] Técnico em 1968. No Maio de 68 tinha o controlo da cabine sonora do Técnico, e tive alguns problemas com isso. Até tivemos uma história engraçada com o Zeca Afonso. Ele estava a cantar A Morte Saiu à Rua - eu estava estava a dedilhar um pouco a guitarra, porque na altura também mexia um pouco nisso -, e alguém perguntou: "Oh Zeca, explica lá ao pessoal o que é isto, o que é que significa isto." E ele: "Venho cantar de borla, e ainda tenho de dar explicações." Isto era no refeitório da associação do Técnico. Começaram as cadeiras a voar, partiu-se aquilo tudo, foi um desastre. E ele disse me: "Nunca mais me convides para uma coisa destas."" E quanto às ideias? "Todos nós éramos do contra. No Técnico sofremos muito com a PIDE. Tivemos o Técnico fechado seis meses. Tivemos de fazer mais meio ano além do ano escolar. Muitos amigos meus foram para a guerra e não voltaram", responde.

Deu pelo 25 de Abril ao passar na Praça de Espanha. "Eu estava ligado à direção de viação, fazia exames de condução. O diretor embirrava comigo porque - nessa altura ainda tinha 24 anos, estava a fazer 25 - eu fazia exames a camionistas e, quando eles apareciam de casaco e gravata, eu mandava tirar. "Não é assim que você trabalha", [dizia-lhes]. Ele exigia-me que eu obrigasse as pessoas a estar assim, e pôs-me na rua. Passei a noite a fazer uma carta ao ministro. Vinha de manhã cedo para a entregar e vi tudo a apanhar o autocarro para o outro lado. Fui para os Cabos d'Ávila [onde era engenheiro], e aquilo era uma confusão, o pessoal tinha atravessado os camiões na estrada", recorda aquele que nasceu em Penamacor, distrito de Castelo Branco, e veio para Lisboa aos 13 anos, fazer o 3º ano do liceu. "Os meus pais na altura acharam que eu aqui em Lisboa tinha outro futuro, e vim para a casa de uma irmã minha."

Voltamos a falar do colossal projeto para Loures. Podemos esperá-lo em 10 anos? "Queria ver se era menos não sei se aguento 10 anos", ri-se. Ali o núcleo museológico ficará em frente ao Palácio do Correio-Mor em que já expos parte da sua coleção. Numa parte do palácio gostava de mostrar as obras de "uma amiga francesa que tem uma coleção de arte do outro mundo".

Quando a conversa começou, Armando Martins disse que pouco tinha a dizer sobre a sua faceta de colecionador, mas foi bastante mais tarde que posou ao lado da escultura de Rui Chafes que tem à entrada do escritório.

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