Armando Martins Janeira: o embaixador que subiu ao monte Fuji
Quando subiu ao monte Fuji, em 1953, Martins Janeira (1914-1988) não era embaixador, mas sim primeiro-secretário de Legação de Tóquio (1952-5), e chamava-se Virgílio Armando Martins. A inédita subida deste português ao monte sagrado do Japão parece ter determinado a sua paixão pelo Japão, o enfoque da sua carreira diplomática e literária no Japão e a mudança do seu próprio nome. No livro Caminhos da Terra Florida, a aventura é contada por Martins Janeira: "Só́ quem tenha contemplado de longe o majestoso cume (do Fuji), duma pureza e elegância de linhas como nenhuma outra montanha,... pode compreender o que representa o Fuji na história e na lenda do Japão e na imaginação de cada japonês. ... a minha ambição, desde que cheguei ao Japão, foi pôr os pés no cimo da montanha sagrada.
... Incitou-me ainda mais o dizer-me o professor Abranches Pinto, que tem mais anos do Japão do que Wenceslau de Moraes, que seria eu o primeiro português a subi-lo.
...Parti com dois companheiros... num dia quente de verão... A ascensão está dividida em dez estações, as casotas onde se pára para tomar um pouco de descanso e uma chávena de chá. ... o caminho, em estreitos ziguezagues era muito íngreme, em cada passo tinha de se carregar com o peso inteiro do corpo. Aqui, mais perto do alto, há casas entre cada estação; era agradável sentar-se e tomar um chá consolador... Pomo-nos de novo em marcha. O caminho é mais difícil, ainda mais íngreme e pedregoso. ... Desceu a noite e faz escuro. A certa altura perdemos o estreito carreiro e ficamos a resvalar numa moreia, nem para trás nem para diante, as nossas lâmpadas de bolso inúteis para distinguir na imensidade da montanha. Faz um frio de gelar, mas todos transpiramos, alagados.
...Por fim, chegamos à nona estação. Estamos todos exaustos. Ceámos uma ceia simples e serrana de sukiyaki, em volta da fogueira...
Faz escuro. O frio corta, apesar das camisolas de alpinismo, do casaco impermeável, dos dois pares de luvas. Agora o carreiro vai cheio de gente, que se levantou toda à mesma hora para chegar ao cume ao nascer do sol. ... A manhã vai clareando, divisa-se já o torii do cume.
Ao fim de uma hora, chegamos - no momento em que a deusa do Sol, Amaterasu-Omi-Kami, mãe do Japão..., assoma sobre um imenso manto branco de nuvens, numa glória de fogo. Observo os japoneses: todos eles estão imóveis e comovidos. Também eu me comovo ao pensar que, duma pequena aldeia de Roboredo vim aqui, ao cume sagrado do Japão, à procura de maior comunhão com as suas tradições, a sua fé lendária... A vertente norte está coberta dum imenso cobertor de neve. Estamos a 3850 metros de altitude. O panorama de nuvens é sublime..."
Abranches Pinto, o grande estudioso dos Jesuítas portugueses no Japão, avisou-o e ao mesmo tempo iniciou-o na História dos Portugueses no Japão. As consequências foram evidentes e Martins Janeira ligou-se ao Japão para sempre, veio a ser embaixador de Portugal em Tóquio (1964-71) e passou a ser o arauto da história riquíssima entre portugueses e japoneses no século XVI.
Mergulhando nos documentos antigos, nos manuscritos de Luís Frois (nessa altura ainda não publicados pela Biblioteca Nacional) fez renascer o mundo dos portugueses que deixaram marca no Japão e tiveram a sageza de deixar escritos os seus pensamentos, o seu sentir naquele primeiro encontro de civilizações. O seu livro O impacte português sobre a civilização japonesa, publicado em 1970, continua a ser uma obra de referência, infelizmente nunca traduzida em inglês. Constitui uma excelente compilação daquilo que sabemos sobre a intensa relação que se criou entre as duas nações, até ao momento em que, por ter corrido tão bem, ficou ameaçada, a partir de 1600 e definitivamente destruída em 1639. Janeira dedica um capítulo longo a documentar os anos iniciais que se seguiram à chegada dos portugueses e dos europeus, culminando com a síntese do impacto deste encontro entre portugueses e japoneses. Descreve de forma viva a colisão cultural entre as duas culturas que se espalhou por vários domínios da civilização japonesa com expressões nas artes, nas ciências, na culinária, no vestuário, na medicina, na música e na própria unificação do Japão. Relembra que no embate destas duas civilizações, de repente face a face e sem transição, o Ocidente e o Oriente se encontraram numa colisão de mundos morais. Na segunda parte do livro indica o impacte monumental que este encontro produziu. "... em nenhum outro país, exceto no Brasil, Portugal exerceu uma influência tão profunda como no Japão".
A bibliografia de Martins Janeira é vasta e pode ser consultada no seu site, https://armandomartinsjaneira.net, onde a sua mulher, Ingrid Bloser Martins, compilou para uma merecida divulgação, todo o seu trabalho de japonólogo, comparando o Teatro de Gil Vicente com o teatro japonês, as literatura ocidental e japonesa (Japanese and Western Literature, A Comparative Study, Charles E. Tuttle Company, Inc., Tóquio, 1970, traduzido em 1974 para japonês e nunca traduzido para português!) ou analisando a política japonesa pós-guerra no livro Japão, A Construção de Um País Moderno.
Pedro Canavarro, que com ele trabalhou no Japão na década de 60, prefaciou a 2.ª edição do Impacte e elogia-o rasgadamente: "...Armando Martins Janeira foi ... profundo conhecedor de ambas as culturas! Numa perspicácia equilibrada de quem, não sendo insensível ao futuro consubstanciado já no forte crescimento económico, político e cultural do Japão, estimula tanto quanto pode e acredita tanto quanto deve no espaço e presença portuguesa como valores atuais e atuantes para o Japão do século XXI. Percorrendo o mundo, buscando especialmente no continente asiático as fontes do seu pensar em constante projeção, ultrapassando Wenceslau de Moraes no encanto nipónico ensimesmado na tradição milenária, é Armando Martins Janeira o maior obreiro neste século da ponte a construir nesta centúria entre Portugal e o Japão."
Para consolidar a sua obra, e o valor que atribuía à relação luso-nipónica, funda o Instituto dos Estudos Orientais na Universidade Nova e a Associação de Amizade Portugal-Japão em Lisboa, que continuam a dar expressão a este incomparável encontro Oriente/Ocidente que há 480 anos ocorreu em paz! A declaração mais sincera de Martins Janeira, "Amei, e amo, o Japão - porque no Japão aumentei Portugal", revela-nos a sua paixão simbiótica e tão útil para os dois países
Professora arquiteta paisagista da Universidade de Lisboa.