Argentina: o calote que não devia ter acontecido
Na Argentina, incumprir dívidas é desporto nacional. Por isso o país costuma não pagar aos seus credores década sim, década sim. Porém, desta vez o governo queria e podia pagar. O calote foi consequência da falta de jeito do país para dar a volta a um juiz ignorante e caprichoso. Quem assim qualifica Thomas Griesa, o norte--americano em cujo tribunal se tramita a reestruturação da dívida argentina, são fontes insuspeitas como o prémio Nobel Joseph Stiglitz ou o The New York Times.
A vez anterior foi diferente. Em dezembro de 2001, a Argentina decidiu incumprir a sua dívida pública depois de quatro anos de recessão, sangrentos protestos na rua e a queda de um presidente: não pagou porque não podia. Esse calote foi considerado o maior da história até à reestruturação grega de 2012. A recuperação foi morosa mas bem--sucedida. Primeiro em 2005 e depois em 2010, o governo negociou com os seus credores e conseguiu que 92% deles aceitassem recuperar os seus investimentos com um enorme desconto. Porém, 8% dos credores, desde então chamados holdouts, rejeitaram o acordo e desafiaram judicialmente a Argentina para devolver tudo - mais enormes juros por tempo, por risco e por usura. Fizeram-no na jurisdição que a própria Argentina tinha escolhido: os tribunais de Nova Iorque. Por que razão aceitou um país soberano submeter-se a juízes estrangeiros? Porque ninguém empresta dinheiro se não confia em recuperá-lo, e a Justiça argentina é tão fiável como a portuguesa. A credibilidade dos tribunais dos EUA constituía assim uma garantia para quem emprestava e um subsídio para quem pedia, porque o menor risco de incumprimento reduzia os juros. Deixou de ser assim.
A raiz deste conflito entre a Argentina, os holdouts (também chamados fundos abutre) e o juiz estadunidense reside num defeito da arquitetura financeira internacional: não existem leis de bancarrota para os Estados. Enquanto uma pessoa ou empresa insolvente pode declarar a bancarrota e reestruturar as suas dívidas, os países estão condenados a desenvolver negociações ad hoc com os seus credores e sem guarda-chuva legal. A Argentina fê-lo com 92% de sucesso, mas o juiz decidiu que a dívida restruturada não devia ser paga enquanto não fosse servida a dívida total dos abutres. Se esta regra fosse universal, nenhuma reestruturação que não incluísse 100% dos credores teria garantias de aceitação judicial e os Estados, a começar pela Grécia e a seguir pela Europa fora, estariam condenados a pagar o que não podem ou nunca mais arranjar financiamento. Neste caso particular, se a Argentina aceitasse pagar o montante total aos holdouts, aqueles 92% que aceitaram o haircut podiam agora rejeitá-lo e destruir, outra vez, a economia do país.
A combinação de ataque abutre, vazio legal e juiz senil levou a Argentina a uma situação insustentável. Mas o país também teve culpas, não apenas por ter falsificado as estatísticas mas por ter provocado o juiz e os investidores com a ameaça de incumprir sentenças desfavoráveis. Essa atitude arrogante também contraria o Martín Fierro, poema gaúcho do século XIX e equivalente nacional de Os Lusíadas. Nele, um velho sábio aconselha o herói:
Faz-te amigo do juiz
Não lhe dês de quequeixar-se;
E quando ele queira zangar-se
Tu deves-te encolher,
Porque sempre é bom ter
Uma cerca onde coçar-se.
Mesmo jogando melhor, a Argentina caiu. E não foi por fazer o golo com a mão mas por celebrá-lo na cara do rival e do árbitro.
* Investigador no Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa