Argentina à espera da reconciliação 30 anos após golpe militar de Videla
"As forças armadas responderam aos crimes dos terroristas com um terrorismo muito pior do que aquele que estavam a combater e, depois de 24 de Março de 1976, podiam contar com o poder e a impunidade de um Estado absoluto, que usaram para sequestrar, torturar e matar milhares de seres humanos". É assim que o escritor Ernesto Sabato resume, em 1984, os anos de regime militar na Argentina no prólogo do relatório Nunca Más, da Comissão Nacional de Pessoas Desaparecidas. Os argentinos assinalam hoje os 30 anos do golpe que colocou no poder o general Jorge Videla.
Trinta anos depois, a memória desses tempos ainda está viva: o destino de 30 mil "desaparecidos" e de 500 crianças nascidas nos cem centros de detenção ainda não é claro e os principais actores do regime continuam sem punição. E se o Exército fez, em 1995, o mea culpa sobre as violações dos direitos humanos, só agora a força aérea reconheceu os abusos. Este ano, o Governo declarou o dia feriado nacional, uma medida aplaudida por uns, mas criticada por outros, que não queriam lembrar o golpe com um dia de festa.
Em 1976, a Argentina vivia no caos, com as guerrilhas dos Montoneros e do ERP a atacarem a polícia e os militares. A Presidente Maria Estela Martínez, viúva de Perón, não tinha controlo da situação e o então poderoso ministro da Segurança Social, José López Rega, colocava a luta contra os grupos de esquerda nas mãos do Triple A (Aliança Anticomunista Argentina) - os primeiros a aplicar o sistema de sequestro e assassínio selectivo.
A alternativa parecia ser o estabelecimento de um novo Governo militar, cuja violência ninguém poderia imaginar - na noite de 23 para 24 de Março a Argentina conheceu então o sexto golpe militar bem sucedido em menos de 43 anos. Contudo, a nova junta militar, liderada pelo general Videla, instaurou um Processo de Reorganização Nacional, que implicava a repressão contra todos os suspeitos de pertencer às guerrilhas: 30 mil pessoas, segundo as organizações humanitárias, "desapareceram".
A América Latina vivia então os anos do Plano Condor, um projecto conjunto das ditaduras chilena (Augusto Pinochet), argentina (Jorge Videla), paraguaia (Alfredo Stroessner), uruguaia (Juan Bordaberry), boliviana (Hugo Banzer) e brasileira (João Baptista Figueiredo) contra os movimentos de extrema-esquerda. Em plena Guerra Fria, a instauração destes regimes era bem vista pelos EUA, que queriam impedir a expansão do comunismo.
O regime militar na Argentina iria durar até 1983, não resistindo à derrota na Guerra das Malvinas. O Governo democraticamente eleito de Raúl Alfonsin tratou de estabelecer a criação de uma comissão para investigar o destino dos desaparecidos. Ainda hoje, todas as quintas-feiras, as Mães da Praça de Maio continuam a manifestar-se frente à Casa Rosada, sede da presidência, para obter informações sobre os desaparecidos. As Avós da Praça de Maio continuam à procura dos netos, que nasceram em cativeiro.
Os altos responsáveis do regime foram entretanto julgados e condenados à prisão perpétua, mas depois amnistiados. A maioria dos militares acabou por escapar ao julgamento, graças à aprovação das leis de Ponto Final (1986) e Obediência Devida (1987). Só no ano passado, o Supremo Tribunal declarou essas leis inconstitucionais, abrindo caminho à reabertura de processos.
Aos 80 anos, o general Videla vive em prisão domiciliária, aguardado acusações sobre o rapto de bebés. O almirante Emilio Massera sofreu um AVC e está desde 2003 num estado vegetativo. A Argentina conhece já parte da verdade contudo, não pode falar ainda em reconciliação.