Área para novas escavações no Teatro Romano de Lisboa quase esgotada
A área para novas escavações no Teatro Romano de Lisboa está quase esgotada, uma vez que as autoridades deixaram há décadas de exercer o direito de preferência quando são postos à venda edifícios ou pisos térreos naquela zona.
Conforme explicou à Lusa a coordenadora do Museu de Lisboa - Teatro Romano, Lídia Fernandes, está por escavar arqueologicamente a área que corresponde a um edifício da Rua de São Mamede, que é propriedade municipal, mas onde estão instaladas as reservas do museu, o que ainda não permitiu essa intervenção.
Este é um dos sete edifícios e lotes que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) comprou ou expropriou entre 1964 e 1971 com vista à demolição e à escavação dos terrenos, para permitir a extensão da área destapada do teatro romano do século I.
Nem todos estes edifícios acabaram demolidos e, nas décadas mais recentes, mantiveram-se as estruturas construídas sobre o teatro, ao mesmo tempo que se escavou o subsolo e se musealizaram as estruturas que foram sendo encontradas.
As escavações em áreas que pertencem a privados são feitas sempre que há uma obra num rés-do-chão ou numa cave da zona, como prevê a lei, que obriga à intervenção de arqueólogos nestes casos.
Lídia Fernandes disse à Lusa que o Museu de Lisboa - Teatro Romano tenta sempre assumir esse papel.
"Acho que a nossa fama não é má e temos conseguido fazer muitas intervenções arqueológicas. Temos a grande mais-valia de conhecermos muito bem o subsolo desta zona", afirmou.
Apesar do esforço, nem sempre a equipa consegue que sejam os seus técnicos a fazer as intervenções arqueológicas, como aconteceu num edifício contíguo ao do próprio museu e que se tornou um alvo recente de polémica entre arqueólogos, por causa do anúncio de uma imobiliária que colocou à venda o rés-do-chão e o promoveu com a referência "ruínas do Teatro Romano de Lisboa [...] integram loft totalmente exclusivo".
O arqueólogo Luís Raposo, presidente do ICOM Europa (Conselho Internacional de Museus) foi um dos que consideraram que este caso "é uma situação escandalosa", sobretudo "pela desfaçatez" da imobiliária, mas também por as autoridades públicas, e em especial a CML, terem abandonado o processo de compra de edifícios privados da zona, para "pouco e pouco procurar colocar mais à vista o teatro".
Luís Raposo sublinhou, em declarações à Lusa, que "esse esforço" não precisava de ter como objetivo "soluções mais extremas", de demolição dos prédios, mas considerou que a CML devia, "pelo menos", exercer os seus direitos de preferência "a nível do solo, no rés-do-chão".
O arqueólogo realçou que o teatro romano é um monumento único, muito estudado, em relação ao qual existe "excelente documentação".
Também Lídia Fernandes sublinhou que há cinco décadas de investigação sobre o teatro e "muito bem fundamentada", algo que "quase nenhum outro sítio arqueológico em Portugal" tem.
As plantas feitas do teatro têm sido confirmadas em 99% pelas escavações e, ao contrário do que acontece com outros monumentos do género, fora de Portugal, "este espaço nem sequer tem reconstrução", tudo "é original e é tudo do século I", realçou Lídia Fernandes, sublinhando tratar-se de uma "pérola em bruto".
Neste momento, está à vista um terço do teatro, que deveria ter capacidade para 4.000 espetadores, "um edifício enormíssimo muito bem construído", como afirmou Lídia Fernandes, que acredita no potencial de rentabilização de um monumento como este, como acontece noutras cidades europeias e como parece ter percebido a imobiliária que está a vender o imóvel contíguo ao museu.
"Melhor sítio do que este não podia existir, com esta vista [para o Tejo], foi por este impacto que foi escolhido este local e não outro [para a construção]", afirmou a arqueóloga, insistindo que "em Portugal não existe outro teatro romano deste nível".
Em resposta a questões da agência Lusa, a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) esclareceu que a obra no edifício contíguo ao museu, construído no século XIX, foi devidamente autorizada, "após a realização de trabalhos arqueológicos de diagnóstico" em 2008, quando a CML identificou que estavam a ser feitos ali "trabalhos de movimentação de terras" sem licenciamento.
"Os resultados da intervenção arqueológica levaram à alteração do projeto inicial, visando a salvaguarda e integração das estruturas arqueológicas identificadas no local", explicou a DGPC, que em 2019 "autorizou um pedido de trabalhos arqueológicos" para a transformação do espaço num T0 com integração e musealização de um troço do teatro romano "e eventualmente de outros elementos patrimoniais".
A Lusa questionou também a CML, mas não obteve resposta até ao momento.
A pandemia impediu o avanço da nova fase de intervenção no Teatro Romano de Lisboa, que levaria, por exemplo, à substituição do tapume com cobertura de zinco que há 20 anos ocupa boa parte da Rua da Saudade.
O projeto incluía, conforme explicou à Lusa a coordenadora do polo do Teatro Romano do Museu de Lisboa, Lídia Fernandes, um novo edifício sobre esse sítio arqueológico, com 700 metros quadrados, onde está uma parte da zona central e da base das bancadas do teatro, do século I, num projeto de arquitetura do ateliê de Ricardo Bak Gordon, "que foi pago".
Estavam também previstas uma intervenção de requalificação na via pública da zona sob a qual está o Teatro Romano (que abarca, além da Rua da Saudade, a parte norte da Rua de São Mamede), a construção de um auditório e de novos espaços para o museu (em lotes municipais que na década de 1960 foram comprados para permitir a escavação e expansão do projeto) ou "a musealização de outras estruturas arqueológicas já intervencionadas e que não estão à vista", segundo Lídia Fernandes.
Em 2020, deveriam ter avançado trabalhos de engenharia para o começo da concretização deste projeto, aprovado pela EGEAC (empresa municipal que gere espaços culturais), pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e pela Direção-Geral do Património Cultura (DGPC), mas "veio a pandemia e tudo parou" e, depois, "o dinheiro foi canalizado para a cultura", nas palavras da coordenadora.
"Agora estávamos à espera que tudo isto passasse para retomar o calendário das obras, mas entretanto mudou o executivo [da câmara] e temos de apresentar o projeto [ao novo executivo]", acrescentou, dizendo que ainda não houve essa oportunidade.
Os primeiros vestígios do Teatro Romano de Lisboa, na encosta do Castelo de São Jorge, virado para o Tejo, foram descobertos em 1798, na sequência dos trabalhos de reconstrução da cidade depois do terramoto de 1755.
Ficaram alguns registos, mas os donos dos terrenos voltaram a construir sobre as ruínas do teatro e só na década de 1960 se voltou a falar do monumento, quando em 1964 um professor da Universidade de Lisboa, Fernando de Almeida, entrou num rés-do-chão em obras da Rua de São Mamede e se deparou com colunas romanas a servir de suporte a estruturas do prédio.
Seguiram-se, até 1971, a compra e a expropriação, pela CML, de sete edifícios na zona, com vista à demolição dos prédios para permitir a escavação. Nas décadas seguintes, avançaram alguns destes trabalhos, de forma intermitente, que puseram a descoberto aquilo que se estima ser pelo menos cerca de um terço do total do teatro romano.
Nem todos os edifícios comprados pela câmara foram demolidos e, ao longo dos anos, o projeto do teatro, embora centrado num monumento considerado único em Portugal, pela sua conservação, data de construção e localização, transformou-se e cresceu para um projeto que pretende preservar e mostrar toda a história desta zona de Lisboa.
Prova disso é o espaço que corresponde hoje ao museu propriamente dito, com entrada pela Rua de São Mamede, onde funciona a administração e a receção do Museu de Lisboa - Teatro Romano e onde estão instaladas as exposições ou onde se desenrolam diversas atividades.
São dois edifícios de épocas diferentes e sob os quais estão musealizadas e abertas ao público áreas já escavadas e intervencionadas, que destaparam importantes estruturas do teatro, mas também edifícios dos séculos que se seguiram e estruturas anteriores, permitindo a visualização direta da sobreposição de camadas da história de Lisboa.
A área de exposições do museu, por exemplo, foi instalada numa antiga fábrica de malas, que ali funcionou até ao século XX.
Com a ajuda da "engenharia de estruturas", que acompanha os trabalhos arqueológicos, há hoje, assim, "o museu, que vai até 10 metros de profundidade, mas que mantém o património do século XIX, século XX à vista e que está bem conservado", reforçou Lídia Fernandes.
Em paralelo, o museu tem feito registos das memórias dos residentes mais idosos de uma zona da cidade que sofreu transformações profundas a nível social nas últimas décadas, como acontece, por exemplo, com o impacto do turismo.
Para Lídia Fernandes, "nada é para apagar, tudo é para conservar quando tudo é digno de memória".