"Aqui na Festa não há trabalho voluntário, há trabalho militante"
Três da tarde, porta da Medideira. Logo ali se percebe a azáfama dos últimos preparativos. O dia está quente. A "Festa", que já passou pela antiga FIL, Jamor, Alto da Ajuda, Loures e que desde 1990 se instalou na Quinta da Atalaia, no Seixal - entretanto alargada a novos terrenos -, e que foi recusada, em 1977, pela então administração da AIP; tal como foi recusada, em 1979, no Jamor, por Mota Pinto e por Krus Abecassis, no Alto da Ajuda, em 1987, é construída todos os anos "por centenas e centenas de comunistas", que não "fazem trabalho voluntário, fazem trabalho militante".
Madalena Santos, que já vai na 46.ª festa, e espera chegar à 50.ª, na Comissão de Espetáculos, explica de forma simples a diferença: "Nós não dizemos voluntário, porque há uma diferença entre trabalho voluntário e trabalho militante. No trabalho voluntário há uma certa exploração dos jovens nesse voluntariado, basta ver alguns dos concertos que há por aí. Aqui é militante, no sentido em que há um objetivo neste trabalho, um sentido de vida, há uma postura de âmbito político, um ideal que se quer afirmar e construir".
A professora na Faculdade de Direito de Lisboa e jurista na Câmara Municipal de Lisboa, que começou na "UEC, depois a JCP, depois o Departamento de Propaganda e só mais tarde a Comissão de Espetáculos", e que está prestes a fazer 65 anos, recorda a primeira festa, a de setembro de 1976, como "uma explosão total de liberdade", sem esquecer a "explosão da bomba, três dias antes" e a "proibição da FIL", no ano seguinte, que exigia que o "PCP pagasse os estragos causados".
"Naquela primeira, que já tínhamos sonhado, ouvia-se muito falar da festa do L"humanité [que também fez nascer a festa do L"Unitá], houve necessidade de improvisar, não havia nada igual. Não existiam aparelhagens, o chamado PA, que pudessem de alguma forma garantir o som, isso não existia em Portugal", lembra Madalena Santos.
A solução "foi alugar um e foi o camarada Rúben de Carvalho que se meteu num avião, foi a Londres, pegou numas páginas amarelas, consultou várias empresas e escolheu. Até haver em Portugal uma empresa que pudesse assegurar um palco da dimensão que os nossos tinham, foi assim: os PA vinham em camiões TIR".
Nesse ano até "gatinhos se venderam", conta a comunista que vai estar "em permanência aqui até ao último dia". Madalena Santos tinha 15 anos e já estava há duas noites "praticamente sem dormir" quando foi a casa para trocar de roupa. "Os meus pais, a minha mãe em particular, disse-me que tinha nascido uma ninhada de gatinhos, mas que também ela queria ir para festa. A solução foi simples: "Não te incomodes, eu levo os gatinhos comigo". Trouxe os gatinhos numa caixinha para o stand da UEC. Quando me perguntaram se eram para vender disse logo que sim [risos]... na primeira festa até gatinhos vendi".
Mas o que chamou a atenção da então jovem comunista foi o "discurso impressionante do camarada Álvaro". E depois, com Carvalhas e Jerónimo, que diferenças?, pergunto. A resposta é esquiva. Madalena Santos elabora um discurso sobre o "coletivo" e traz à conversa a frase de "um camarada", uma ideia de que nunca se esquece: "Tu no nosso partido só tens uma tarefa: é arranjar um que te substitua."
E não esmorece com os maus resultados eleitorais? A resposta é rápida. Sem hesitações: "Nunca, sabemos que no nosso lado está a razão, que mais tarde que nunca levaremos a água ao nosso moinho". Nunca?, insisto. "Nunca" e explica que há "desequilíbrios entre as armas do capitalismo e as nossas. Mas nós estamos no lado bom".
Voltamos às memórias, os nomes que marcaram as noites do Avante. Pergunto por dois ou três. "O concerto dos [Dexys] Midnight Runners foi brutal, o Chico [Buarque], na Ajuda, foi memorável: foi o primeiro filão dos músicos brasileiros descobertos, digamos assim, pelo Rúben [de Carvalho].
Se verificar, e isto dava um estudo, os primeiros músicos de um certo tipo de música só se tornaram moda depois de terem vindo à festa", explica Madalena Santos que considera que a Festa do Avante! "nisso tem sido pioneira" com os filões de "brasileiros, irlandeses, os da Galiza, os franceses... até na recuperação do Fado", responde Madalena Santos.
E o Rúben de Carvalho? "A festa foi uma acendalha para ele, a festa lançou-lhe desafios."
Da história da festa, que dizem não haver nenhuma como ela, há três nomes do "coletivo" que marcaram estes 46 anos: Rúben de Carvalho, jornalista (na Vida Mundial, O Século, Telefonia de Lisboa e Jornal Avante), deputado, vereador, membro do Conselho de Opinião da RTP , membro do Comité Central, o "mentor" da Festa; Fernando Vicente, o homem das infraestruturas; e Rogério Ribeiro que foi responsável pela "estética".
Maria Alves, militante desde junho de 1972, que está junto de seis "camaradas" na montagem da exposição política central sobre a criança e pais com direitos, perto da entrada da Quinta do Cabo, e que nunca falhou nenhuma Festa do Avante!, diz, de sorriso largo, que "estar aqui é dar força ao PCP, aos valores da paz, da solidariedade, o respirar da liberdade".
"Aos 67 anos", sublinha a ideia, "posso dizer que valeu a pena estar nesta força, a minha vida não foi em vão". E recorda que quem, como ela, que "era da zona Oeste, próximo de Peniche, não pode esquecer que ali ao lado [no Forte] estavam pessoas presas, a serem torturadas". É esse passado, que não esquece, que a faz acreditar e ter "confiança no futuro" apesar dos maus resultados eleitorais do partido. "As pessoas são livres de votar, os resultados eleitorais são o que são, mas nós continuamos. O resultado foi mau? Ok, mas em que é que isso me leva a diminuir o acreditar que é preciso mudar? Nada", explica. E será a última Festa do Avante! de Jerónimo de Sousa como secretário geral? A resposta é breve. "Não acredito", diz sem perder o sorriso.
Ali ao lado, Margarida Amador, que se inscreveu no partido em 1974 e que, tal como Maria Alves, está "feliz" pela festa, dá uma achega à resposta: "Nós andamos cá para lutar."
Susana Matos, 46 anos, professora, que entrou no PCP aos 15 anos, fala da admiração que tem pelas duas "camaradas" mais velhas, porque "estar com quem entrou em 1972 para o partido é um exemplo de coragem e de luta, de ser comunista". E só tem um pedido a fazer: "Tratem-nos bem, por favor".
Uma dezena de metros adiante, Fernando Pereira, Carichas Albuquerque e Ricardo Marques estão na montagem do stand do colecionador. "Coisas antigas, loiças, máquinas de escrever... ali daquele lado são as canetas os postais", explica Carichas Albuquerque, alentejano, que foi um "manga de alpaca", diz a rir.
Aos 75 anos, o escriturário reformado, natural de Arronches, conta que só "por uma vez" faltou à festa. "Não estava por cá, foi por isso. Desde o 25 de Abril que sou militante, sabia? Aproveitava as férias para estar aqui."
Fernando Pereira, o mais reservado dos três, "pintor, funcionário da Carris", que está a serrar tábuas para o stand, diz que "desde miúdo" que vem "para aqui". E acrescenta: "É fazer as contas, tenho 62 anos".
Ricardo Marques, 34 anos, engenheiro do Ambiente, o mais falador, "é da festa desde os 16 anos, antes vinha com os meus pais que também são do PCP". É do PCP por causa deles? A resposta saiu-lhe de imediato e sem qualquer hesitação: "É a educação, a experiência de vida, o que vivemos que nos leva a tomar escolhas". E tempo para aqui estar? "Arranjamos sempre tempo para nos dedicarmos aos nossos ideais."
Mas nem todos são "militantes", há quem esteja na preparação da festa sem ser "formalmente" do PCP. Diogo Afonso, 19 anos, de Almada, prefere os "Pioneiros de Portugal" [organização de "escuteiros" que nasceu em 1974 e que se "legalizou" em 1982] a estar na JCP. E explica a escolha sem nenhuma atrapalhação: "Desde pequenino que venho para aqui, até na barriga da minha mãe. JCP? Eles têm muita gente sem fazer nada. [Risos] Prefiro estar aqui a ajudar os "pioneiros" do que ir para a jota".
Mariana Guerra, 28 anos, psicóloga estagiária, que já fez "parte da JCP" e que "agora está mais fora" por ter "outras coisas", diz gostar do que faz no Espaço Criança. E o que se faz? "...também falamos sobre os valores de Abril".
A Festa do Avante! [www.festadoavante.pcp.pt] começa esta sexta-feira com um concerto sinfónico de celebração dos 100 Anos de José Saramago porque "há música na palavra de Saramago", diz Madalena Santos. A "música" de seis livros que "promete ser" um dos "grandes momentos" de uma festa que, acreditam os militantes voluntários "não será a última do camarada Jerónimo como secretário-geral".