Aprender a viver com isto

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Os tempos mudaram e nós temos de aprender a viver com o terrorismo." Manuel Valls mediu bem as palavras, quando falou na manhã de ontem aos franceses. Em ano e meio, vão sete atentados em França, a maioria dos ataques terroristas em toda a Europa nos últimos cinco anos e com cinco vezes o número de vítimas.

França sofre mais com o terrorismo. E leio nas notícias de ontem que o país já não reage como no primeiro. A união de antes é agora crítica aberta. Ao governo, porque não faz o suficiente para cercar os jihadistas, para reforçar os meios de segurança. Logo na quinta-feira à noite ouviu-se o antigo autarca de Nice a acusar Hollande: pediu-lhe meios e não lhe foram dados. Há uma palavra para isto: frustração. Ou outra: incapacidade.

E basta fazermos um esforço para perceber por que a nossa primeira reação já não é sermos todos Charlie Hebdo - nem em França, nem no resto do mundo. Ontem, aliás, circulou uma imagem notável que o explicava bem: "#JeSuisCharlie #JeSuisParis #JesuisIstanbul#JeSuisBagdad #JeSuisBangladesh #JeSuisBruxelles#JeSuisNice.... #JeSuis Épuisé. "Esgotado". Sim, é como estamos. Mas atentem ao que disse Manuel Valls, porque ele mediu as palavras: "Os tempos mudaram e nós temos de aprender a viver com o terrorismo".

Na noite de quinta-feira, às 22h37, recebi as primeiras notificações sobre o que se estava a passar. Estava a meio de um jantar e leio, de relance: "Camião atira-se para cima de esplanada em Nice. Possível atentado." Estranhamente, não liguei - prossegui. Muitas outras notificações caíram no meu telemóvel nas duas horas seguintes. Mas só quando o jantar acabou retive a palavra: atentado. E estive duas horas depois a remoer isto: será que tudo isto já está tão banalizado que nem percebo à primeira o grave que cada atentado é?

Não creio. A palavra "camião", sim, deixou-me perdido. Um atentado com um camião não me passava pela cabeça, a não ser que tivesse vivido em Israel, por exemplo. Não aqui: um camião a 50 quilómetros/hora, percorrendo dois quilómetros seguidos da marginal de Nice, em ziguezague, apanhando o maior número de pessoas possível - como se o condutor estivesse num daqueles jogos de computador que nunca deviam ter sido permitidos. Uma mistura de GTA com o novo Pokemón Go.

Não faz sentido, mas de facto os tempos mudaram. "Se não tiverem explosivos, atirem o vosso carro contra eles", ameaçava um porta-voz do Daesh em setembro de 2014. Na verdade, a ameaça era bem pior do que isto: "Se não tiverem engenhos explosivos ou balas para matarem infiéis americanos, franceses ou os seus aliados, esmaguem as cabeças deles com pedras, chacinem-nos com uma faca, atirem o vosso carro contra eles, atirem-nos de um sítio, sufoquem-nos ou envenenem-nos." Nos últimos anos, infelizmente, já vimos vários destes exemplos de ódio aplicados contra nós - os que não o temos (ódio). As armas deles não são as nossas, os limites deles não existem, os princípios deles também não.

É por isso que me custa muito ouvir dizer que temos de responder a isto de maneira diferente. Não noticiar, por exemplo, como ontem vi escrito e partilhado por muitos. Acho inteiramente legítimo que alguém tenha a opção de não ligar a televisão, de não ouvir as notícias, por revolta contra o terror. Mas não acho que possamos impor a todos que não exista informação sobre os atos atrozes que são cometidos em nosso solo, ou em qualquer parte do mundo. Saber, sim, custa-nos muito. Mas só isso nos permite confiar que um dia vamos ganhar esta guerra, só isso nos garante que continuaremos a ser como somos - livres, diferentes, incomparavelmente melhores do que eles.

Dizer isto implica acrescentar um ponto: noticiar o terror tem limites. E esses limites passam por não dar uma notícia sem a ver devidamente confirmada. E por, já agora, não mostrar imagens que não é mesmo preciso mostrar (como aconteceu em França, com uma TV que pediu desculpas, ou como aconteceu por cá com um canal por cabo, que nem desculpas pediu).

O que me deixou feliz foi ver que, no dia de ontem, continuaram as mensagens de solidariedade nas redes. Vi como uma mulher encontrou um bebé de oito meses que tinha ficado perdido no caos daquela avenida. Vi gente a partilhar sorrisos e lágrimas.

Sim, Manuel Valls tem razão: "Os tempos mudaram e nós temos que aprender a viver com o terrorismo." E isso significa viver com isto. Aprender que um camião pode ser uma arma terrível. A olhar para trás com redobrado cuidado. Mas a confiar que os tempos mudam, mas nós vamos melhorar. É a isso que se chama civilização - e é isso que eles não conhecem.

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