Após anos no congelador, relações luso-brasileiras "só podem melhorar"
De Belém a São Bento, passando pelo Palácio das Necessidades, o suspiro de alívio foi quase audível - a vitória de Lula da Silva nas presidenciais brasileiras do passado domingo foi recebida com particular entusiasmo entre a cúpula política portuguesa. E não foi só pela proximidade política. Visto de Lisboa, o regresso de Lula ao poder trouxe o gigante sul-americano para mais perto de Portugal. "Temos muitas saudades do Brasil", disse António Costa na reação aos resultados eleitorais, numa frase que ilustra o passado recente das relações luso-brasileiras.
O regresso de Lula da Silva ao Palácio do Planalto deverá repor a normalidade no relacionamento político entre os dois países, que esteve pouco menos que congelado ao longo dos últimos anos. "É fácil a relação luso-brasileira ser diferente e ser melhor", já que "atingiu níveis mínimos, muito baixos" nos últimos anos, diz ao DN Carmen Fonseca, docente de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-Nova). "Haverá maior aproximação e maior diálogo. As relações, que foram neutras, frias, nestes anos, vão melhorar", antecipa também Luís Filipe Castro Mendes, embaixador que foi cônsul-geral no Rio de Janeiro no final dos anos 90. Os responsáveis políticos portugueses acham o mesmo, como denota a reação do ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, que, na sequência da vitória do candidato do PT, afirmou que "há algo muito promissor para o nosso país" no desfecho das eleições do último domingo. A começar já pelo retomar das cimeiras bilaterais entre os dois países, que deverão voltar à agenda em 2023, após seis anos de interregno.
Francisco Seixas da Costa foi embaixador português em Brasília entre o início de 2005 e o final de 2008, coincidindo com a presidência de Lula da Silva. Não tem dúvidas de que a reeleição do antigo presidente é uma boa notícia para Portugal. "Durante os oito anos em que foi presidente, Lula da Silva mostrou-se extremamente positivo para as relações entre Portugal e o Brasil. Sou testemunha disso", lembra o embaixador. "É natural que da parte portuguesa haja um sentimento de expectativa positiva."
Olhando para as relações entre os dois países durante o mandato de Jair Bolsonaro, não sobram muitas dúvidas sobre o afastamento que marcou este período. "Durante estes quatro anos, o Brasil, por razões puramente internas, manteve uma agenda ínfima no plano externo. E Jair Bolsonaro não era, manifestamente, alguém preocupado com as relações com Portugal, nem com os países lusófonos", diz Francisco Seixas da Costa, sublinhando que, perante este cenário, a reação portuguesa "foi aquela que costuma ser quando as coisas não são as mais positivas: uma atitude de atentismo, de esperar por melhores dias". Para o antigo embaixador português em Brasília o "Estado português portou-se bem, soube esperar, que é o que faz historicamente. Mantém-se o discurso um bocadinho gongórico da amizade, da fraternidade, amigos, irmãos, primos... Isto é essencial. Há um interesse na relação bilateral que vai para lá das conjunturas". O diplomata chama-lhe uma "almofada de retórica" - "uma maneira de ganhar tempo, não permitindo que as conjunturas afetem a relação".
Foi isso que fez Marcelo Rebelo de Sousa ao longo destes últimos quatro anos - e "fez muito bem". "Claramente, foi feito um esforço da parte portuguesa, engolindo alguns sapos, na ideia de que há coisas mais importantes do que estes incidentes de conjuntura. Marcelo Rebelo de Sousa deu passos com grande sentido de Estado, na minha opinião. Acho que fez lindamente. Temos de engolir os sapos quando isso é do nosso interesse, não passando, obviamente, os limites da dignidade do Estado", defende Francisco Seixas da Costa. Mais do que isso, Marcelo "soube fazer os sinais certos nos momentos certos. Encontrou-se com Lula da Silva, teve a presciência de perceber que passava por ali o futuro. Correu algum risco? Correu. Podia não ter ganho Lula, ganhava Bolsonaro e tínhamos que refazer o jogo desde o princípio. Mas ao ter corrido esse risco, o risco pagou".
Carmen Fonseca considera que há agora todo um "conjunto de elementos que pode trazer alguma revitalização às relações luso-brasileiras", começando pelo "histórico de Lula de aproximação a Portugal" e prosseguindo naquele que é, cada vez mais, "um elemento-chave" nas relações entre os dois países: o crescente número de brasileiros residentes em Portugal, no que é hoje a segunda maior comunidade brasileira no exterior (a maior está nos EUA) e a mais numerosa comunidade imigrante em Portugal. Segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), no final de 2021 viviam em Portugal 204.694 brasileiros, um número que subiu para os 252 mil já este ano e que, a manter a tendência de crescimento, rapidamente chegará aos 300 mil (e estes dados não contemplam pessoas com dupla cidadania ou casos não-legalizados).
"Isto molda as relações entre os dois países, tem uma influência decisiva", sublinha a investigadora, especialista em relações externas do Brasil, lembrando que a questão migratória já foi um ponto muito relevante na agenda do presidente brasileiro no início do século, quando, em 2003, foi assinado o chamado Acordo Lula, que "na altura permitiu a regularização de milhares de cidadãos brasileiros que se encontravam em situação ilegal em Portugal". Hoje a situação já não é a mesma, mas a dimensão da comunidade brasileira transforma-a "num ator fundamental na relação entre os dois países, a agenda migratória é crucial" na relação luso-brasileira e poderá ditar novas áreas de cooperação, por exemplo no setor da educação.
Outro tema omnipresente entre Portugal e o Brasil é a questão económica. Do outro lado do Atlântico está um mercado de mais de 200 milhões de pessoas e sem a barreira da língua, mas a balança comercial mostra um enorme défice do lado português. De acordo com dados da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), em 2021 Portugal exportou bens para o Brasil no valor de 707 milhões de euros, enquanto importava 2,5 mil milhões. Uma tendência acentuada no período de janeiro a agosto deste ano: 574,9 milhões em exportações, 3,1 mil milhões em importações. O azeite, seguido pelos vinhos, são os produtos que as empresas portuguesas mais vendem para o Brasil. Em sentido inverso, Portugal importa sobretudo óleos brutos de petróleo ou minerais betuminosos, bem como soja e milho. Mas se passarmos para o setor do turismo, os números mostram um aumento em flecha do turismo brasileiro no território português: segundo os dados da AICEP, entre janeiro e agosto deste ano o número de dormidas de hóspedes brasileiros disparou 645% face ao período homólogo de 2021.
Para lá da relação mais direta entre os dois países, que interesses comuns têm Portugal e Brasil no plano internacional? Para Castro Mendes, o regresso de Lula deverá levar a um "retomar das grandes linhas de ação da política externa brasileira em relação ao que eram antes de Bolsonaro", mas levando em linha de conta que o mundo não é o mesmo e que as diferenças entre Portugal e o Brasil "em termos de inserção geopolítica e geoeconómica são muito importantes e não devem ser esquecidas".
"A importância do Brasil é grande, mas não está no eixo das nossas prioridades", sublinha o antigo ministro da Cultura, destacando que Portugal se insere nos grandes blocos da UE e da NATO, enquanto o Brasil está "noutro circuito, quer inserir-se na relação sul-sul, que começou com os BRICS [grupo de países que junta o Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]. Penso que vai querer continuar a aproximação aos grandes países do Sul e vai também retomar a aposta em África", diz o embaixador, referindo que esta última questão interessa particularmente ao nosso país. "Se o Brasil apostasse na CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], seria, obviamente, muitíssimo importante para a nossa política em relação aos países de língua portuguesa. Mas era preciso que o Brasil se convencesse a apostar mais" na comunidade lusófona, que "nunca gerou um grande entusiasmo por parte dos brasileiros".
Também Francisco Seixas da Costa lembra que Portugal e Brasil são dois países distantes em muitos aspetos: "O Brasil é um país do Sul, que olha as coisas de sul para norte, há coisas em que se cruza connosco, nomeadamente as relações com a União Europeia, mas nem sempre olha da mesma maneira. Veja-se agora o caso da Ucrânia."
Mas se Portugal e Brasil se movem em diferentes tabuleiros geopolíticos, isso também abre uma janela para possíveis pontes. Carmen Fonseca destaca uma questão que deverá entrar na agenda bilateral e em que Portugal pode assumir um papel relevante - o acordo entre a União Europeia e o Mercosul, que ficou "congelado" por falta de ratificação dos Parlamentos nacionais dos países da UE: "Naturalmente que isto depende da forma como o presidente [brasileiro] e o seu governo definirem as prioridades da política externa, mas Portugal pode ser aqui uma peça importante do diálogo com a União Europeia, na revitalização do diálogo, e pode apresentar-se como essa chave, quer perante o Brasil, quer perante a UE."
susete.francisco@dn.pt