Apocalypse Nu
A história é conhecida, mas vale a pena contá-la. Em 1 de Março de 1976, Francis Ford Coppola e a família viajaram até Manila para catorze semanas de rodagem de um filme sobre a guerra do Vietname. Desde há muito que o argumentista John Milius acalentava o projecto de adaptar ao cinema Coração das Trevas, de Joseph Conrad, transferindo o cenário original dessa novela, o Congo do século XIX, para o Vietname da década de 1960, ambos dominados pela perversidade colonial e pela radicalidade do mal, levadas ao extremo da demência. "O horror! O horror!" são as últimas palavras proferidas por Kurtz, a personagem central do livro de Conrad, encarnação demoníaca do mal radical, e são também essas as palavras com que o coronel Kurtz, interpretado por Marlon Brando, se despede da vida e de milhões de espectadores nos minutos finais de Apocalypse Now.
Horror é a palavra acertada para descrever as filmagens desta obra-prima e nunca na história do cinema a feitura de um filme se aproximou tanto do seu argumento, mimetizando-o de uma forma tão perfeita que, à distância de 40 anos, ainda nos parece estranha, singularmente bizarra. Por muito extraordinário que tenha sido o desempenho dos actores principais - Marlon Brando, Robert Duvall, Martin Sheen, Dennis Hopper - e dos milhares de figurantes, na realidade eles não precisaram de fazer grande coisa para reproduzir a atmosfera densa, densa de loucura e névoa, em que, ao som dos The Doors, somos mergulhados logo nos primeiros instantes do filme.
Aquilo que viveram nas Filipinas, sob os comandos de Coppola/Kurtz, foi, sem tirar nem pôr, um verdadeiro apocalipse e a catástrofe esteve tantas vezes à espreita que podermos ver hoje o filme na tela tem algo de miraculoso, com ressonância divina. Algo tanto mais miraculoso quanto se sabe que quase todos os protagonistas deste drama não foram primeiras escolhas: o realizador deveria ter sido George Lucas, não Coppola (Lucas queixar-se-ia mais tarde De que o amigo se apropriara vergonhosamente do projecto); para o papel do capitão Willard, a personagem encarregada da missão de localizar e assassinar o coronel Kurtz, foram sondados, sem sucesso, Steve McQueen, Al Pacino, Tommy Lee Jones, Keith Carradine, Nick Nolte. Inicialmente indisponível, Martin Sheen só acabou por entrar em cena porque, ao fim de um mês de filmagens, Coppola não gostou da prestação de Harvey Keitel.
Pensou-se, aliás, que outros actores, como Jack Nicholson, Robert Redford ou James Caan, tanto poderiam desempenhar o papel do coronel Kurtz como o do capitão Willard e, em 2015, Clint Eastwood revelou que Coppola lhe ofereceu o papel de Willard e que Steve McQueen tentou convencê-lo a aceitar, mas Eastwood declinou por, à semelhança de McQueen e de Pacino, não querer estar tanto tempo fora da América, em filmagens nos confins da Ásia. Para a cena das coelhinhas da Playboy, tentou-se contratar a belíssima Linda Carter, mas esta mostrou-se indisponível pois tinha sido escolhida entretanto para o papel de Wonder Woman.
Perante tantas recusas, Coppola, num acesso de fúria, atirou pela janela fora os Óscares que ganhara e, à excepção de uma, todas as estatuetas ficaram despedaçadas no passeio da frente. Aliás, mesmo com John Milius, o argumentista, passou-se uma história curiosa: voluntariara-se para o Vietname, mas a asma impedira-o de ir à guerra, sendo esse um dos principais motivos, talvez o principal, de cultivar o sonho, ou o pesadelo, de adaptar ao cinema a novela negra de Joseph Conrad.
Tudo convergiu para uma tempestade perfeita. Coppola chegara a ponderar fazer a rodagem na Austrália, o que decerto teria evitado muitas tragédias, mas, em conjunto com a equipa de produção, acabou por decidir-se pelas Filipinas, por a mão-de-obra ser aí mais barata e por ter mais fácil acesso a material de guerra norte-americano, além de contar com o inestimável apoio do presidente Ferdinand Marcos, que se comprometeu a fornecer equipamento militar para as filmagens.
Pouco antes de partir para a Ásia, Coppola falou com Roger Corman, que também usara as selvas filipinas como cenário de alguns dos seus inenarráveis filmes de série B e que tentou por todos os meios dissuadi-lo de ir. Tarde demais, os preparativos estavam em marcha, o desastre anunciava-se. Em desespero de causa, Corman falou dos tufões medonhos, mas Coppola, na altura aureolado pela fama e glória de American Graffiti e de Padrinho I e II, não lhe deu ouvidos, como, de resto, não deu ouvidos a ninguém. A produção milionária pagava todos os excessos e todos os gastos sumptuários do realizador e do seu desmesurado ego, que exigia copos de cristal Lalique, taças de champanhe Tiffany e iguarias de luxo, enviadas com urgência no primeiro navio que saísse de São Francisco (só em transportes, a faustosa festa do seu 37.º aniversário, celebrada no meio da selva para 400 convidados, custou mais de oito mil dólares, para não falar dos aviões fretados que iam a Paris buscar utensílios e panelas de cozinha, das massas mandadas directamente de Itália, do chef vindo do Japão para fazer um jantar de carne kobe ou do jacto privado especialmente adornado com interiores art déco).
Coppola, que na altura começara a fumar marijuana a um ritmo alucinante, mostrava-se incapaz de gerir um projecto daquelas dimensões, ademais levado a cabo em paragens remotas e inacessíveis, longe de tudo, em lugares atravessados por caudais de água tão perigosos que os tripulantes dos barcos de apoio às filmagens usavam t-shirts com um número nas costas, para mais fácil identificação dos cadáveres em caso de afogamento; além disso, as montanhas circundantes tornavam arriscadíssimo o movimento dos helicópteros, essenciais para a logística dos transportes e para a rodagem de algumas cenas-chave, como a do ataque aéreo ao som das Valquírias de Wagner, sob os comandos de Robert Duvall ("adoro o cheiro do napalm pela manhã"), ou a da chegada pelos céus de três coelhinhas da Playboy, cujo espectáculo erótico tem de ser bruscamente interrompido pela ameaça da soldadesca em delírio.
Como nota Peter Biskind no apaixonante livro Easy Riders, Raging Bulls, tudo fazia lembrar uma das falas mais conhecidas do filme, quando Martin Sheen, no meio do caos, pergunta a um soldado "quem é que está aqui ao comando?" e o soldado responde "não és tu?". No local das filmagens, com o realizador a passar dias seguidos fechado na sua caravana luxuosa, não se sabia ao certo quem estava ao comando e, aos poucos, Francis Ford Coppola converteu-se, ele próprio, na personagem do coronel Kurtz, um tirano obcecado por conspirações, colocado à frente de uma legião de fiéis a quem não tolerava a mínima contrariedade ou o mais pequeno deslize. Sucediam-se os despedimentos sumários, uns atrás dos outros, fruto da tremenda insegurança do realizador, mergulhado no pânico de não conseguir terminar o seu filme e, pior do que isso, apavorado pela possibilidade de o produto final ser algo menos do que uma obra-prima (e, claro, um tremendo êxito de bilheteira).
Os problemas acumularam-se numa espiral insana e fétida: contratado por uma soma astronómica (um milhão de dólares semanal por três semanas de trabalho e 11% dos lucros), Marlon Brando chegou ao local de filmagens completamente às escuras, sem ter sequer lido o guião ou o livro de Conrad; a meio da rodagem, Martin Sheen sofreu um ataque cardíaco quase fatal, que Coppola procurou afanosamente, mas sem sucesso, esconder dos produtores da América; Dennis Hopper desembarcou nas Filipinas como era hábito, completamente drogado e trôpego, a cair de bêbado, na companhia de Caterine Milinaire, uma fotógrafa filha do duque de Bedford, com quem o actor teve as costumeiras cenas de violência e fúria, com tiros no quarto em que estavam hospedados e Caterine a mal conseguir disfarçar as nódoas negras afiveladas no rosto.
Para piorar as coisas, o eclodir de uma rebelião muçulmana no sul do país obrigou o presidente Marcos a mandar retirar o material militar do local de filmagens e a proibir os voos nocturnos, o que criou gravíssimos problemas logísticos e de abastecimentos. Perdidos no meio de uma floresta húmida e hostil, sem receber salários e com pouco ou nada para fazer, sem alimentos nem distracções, sem água potável e sem o conforto de um banho quente ou do sono numa cama lavada, muitos começaram a alucinar, quais soldados no Vietname. A analogia, de resto, fora detectada muito antes disso, quando os mais perspicazes se interrogaram se, ao transferir tanto da América para uma selva asiática, com refeições tumultuosas de hambúrgueres e cachorros-quentes, a produção de Apocalypse Now não estaria, porventura involuntariamente, a repetir os fatais erros que haviam sido cometidos pelo presidente Johnson e pelos generais do Pentágono.
Em Maio de 1976, e como muitos tinham previsto, um tufão gigantesco atingiu em cheio o local das filmagens. O Olga, assim se chamou o demónio, varreu tudo à sua passagem, destruindo diversos cenários e causando prejuízos incalculáveis. No meio das inundações e da lama, com dias a fio de dilúvio infindo, instalou-se o caos e as filmagens sofreram mais uma paragem, para desespero dos produtores e financiadores: a estreia do filme, aprazada para Abril de 1977, só teria lugar em 1979 e o orçamento inicial de 14 milhões de dólares derrapou para 31 milhões (os lucros, no entanto, compensaram largamente: 78 milhões só nos Estados Unidos, 150 milhões no resto do mundo).
Enquanto os milhares de figurantes eram vigiados por seguranças armados, para os impedir de fugirem ou de assaltarem o cofre com o dinheiro dos salários, numa atmosfera digna da novela de Conrad, Francis Coppola passou os dias do tufão fechado num quarto de hotel em Olongapo, na companhia escaldante de uma actriz de filmes pornográficos que conhecera durante as filmagens de O Padrinho II. Em fúria, membros da equipa invadiram o quarto e tentaram atirá-lo nu para a piscina do hotel, mas o realizador conseguiu cobrir-se a tempo com um lençol e acabou por ser lançado à água com alguma decência.
Não foi, de resto, o único caso que Coppola teve nessa época, garantindo muitos que se envolveu igualmente com Linda Carpenter, uma das coelhinhas da Playboy que aparecem no filme, algo que o realizador sempre negou, como negou a história da actriz porno. Foi-lhe impossível desmentir, contudo, o duradouro e público romance que então manteve com a argumentista Melissa Mathison, que fora sua assistente em O Padrinho II e que mais tarde se casará com Harrison Ford, um jovem actor que em Apocalypse Now encarnou a personagem do coronel Lucas (uma alusão George Lucas?), o homem que dá a Willard a missão de matar Kurtz.
À boa maneira italiana, Coppola levara toda a família para as Filipinas e Eleanor, a sua mulher, foi então especialmente maltratada: além das infidelidades ostensivas, ou muito pior do que elas, Ellie foi alvo de inúmeros gestos de desprezo por parte do marido, a ponto de ter de assistir aos visionamentos das filmagens do dia sentada na última fila da plateia, na maior das obscuridades, ou de ter de desembarcar dos helicópteros em último lugar, depois do realizador, da amante, da assistente pessoal e até da carga de transporte. O divórcio esteve iminente e, nos momentos mais turbulentos, Francis sofreu um grave ataque de epilepsia, acompanhado de alucinações persistentes que o faziam ver a coelhinha Linda Carpenter (Playmate de Agosto de 1976) como uma bruxa maléfica e aterrorizadora, obcecada em destruí-lo. No fundo do abismo, Coppola pensou que iria morrer e chegou a pedir a George Lucas que, em caso de tragédia, lhe concluísse o filme.
O ambiente exterior não ajudava e, a dado trecho, soube-se que os cadáveres colocados no plateau não provinham de um centro de investigação médica, como garantia o seu fornecedor, sendo, isso sim, corpos furtados num cemitério próximo. Com os custos de produção a subir vertiginosamente de dia para dia, Coppola tentou desesperadamente encontrar novas fontes de financiamento e acabou por empenhar toda a sua fortuna e os seus bens pessoais naquela aventura demencial.
Um dia, ficou devastado ao constatar que tinham cortado por falta de pagamento o telefone da sua casa de Napa Valley, apercebendo-se então que o fracasso do filme o levaria à miséria completa. Entrou em depressão profunda, da qual nem as abundantes doses de lítio que tomava há anos se mostravam capazes de o salvar. Para iludir os demónios, reagiu no estilo habitual, em grande, com uma festa de aniversário esplendorosa, na qual centenas de convidados, em que se incluíam George Lucas, Robert de Niro e Dennis Hopper, gritaram "We will rule Hollywood! We will rule Hollywood!", enquanto um coro de cheerleaders entoava "Francis has the power!". Na altura, muitos temeram que Francis se suicidasse e as reuniões intermináveis com os executivos dos estúdios faziam prever o pior, com o realizador, antes sequer de ter acabado aquele filme, a falar torrencialmente de novos e mirabolantes projectos, como uma adaptação ao cinema de Afinidades Electivas, de Goethe, filmada em 3D e com a duração de dez horas...
O casamento com Ellie compôs-se e, como que por milagre, o filme estreou-se nos cinemas em Agosto de 1979, para glória eterna do seu autor e pujante lucro de Hollywood. Há poucos meses, Coppola deu uma entrevista à Playboy com uma das coelhinhas, Cyndi Wood, em que esta contou que também entrou em colapso a meio das filmagens e teve de ser injectada com vitamina B12 para continuar em palco. De Linda Carpenter, a sua colega, pouco mais se ouviu falar. Da actriz porno, menos ainda.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.