Apocalipse e otimismo da vontade
A nossa paixão apocalíptica não tem
outro objetivo que não seja o de impedir
o apocalipse.
(Günther Anders, O Tempo do Fim)
Vivemos tempos estranhos e só a rememoração da História que sobre nós pesa, mas que facilmente esquecemos, nos permite entender que, com exceções precárias e localizadas, todas as gerações viveram tempos estranhos e nenhuma crueldade ou manifestação de barbárie é inédita na História.
Somos os únicos animais que sabem que vão morrer, mas essa consciência da mortalidade, que já Valéry no século passado alargava às civilizações (Nós, civilizações, sabemos hoje que somos mortais) estende-se agora ao terrível conhecimento de que a espécie humana tem sido capaz de sabotar, no seu progresso material, os próprios mecanismos naturais que são condição da sua sobrevivência. Hoje sabemos não só que somos mortais, não só que o modo de organização do mundo a que chamamos civilização é também mortal, mas que a própria sobrevivência dos nossos descendentes pode um dia tornar-se inviável.
O otimismo que nos é possível, face a tanta incerteza e a tanta angústia, assenta na experiência da imprevisibilidade. Quase nunca a História evoluiu de acordo com as nossas previsões, para o bem ou para o mal. E se acabámos por compreender que os amanhãs não cantam, talvez acabemos por entender também que não é inevitável que ardam.
O otimismo de Karl Marx levava-o a afirmar que a Humanidade é capaz de realizar todas as tarefas a que se propõe. A esse otimismo feliz, que é posto em causa pela fraca resposta que a Humanidade está a dar à crise climática (guerras a espalhar-se pelo globo e muito maior consumo de energias fósseis, a água que falta, o ar que sufoca, a terra que se gasta e o fogo que ronda, na síntese do historiador Patrick Boucheron), devemos contrapor aquilo que Hans Jonas defendia, já em 1979, no seu Princípio da Responsabilidade: "A profecia da desgraça é feita para evitar que ela se realize e seria o cúmulo da injustiça censurar os que lançaram os alertas, caso o pior não se realize."
Se olharmos para o debate político, em Portugal e no mundo, veremos que, apesar de não faltarem os lançadores de alertas e os estudos científicos, a preocupação com a sobrevivência dos nossos netos passa bem atrás da preocupação com as invasões, as guerras e as chacinas que estão a recrudescer por todo o mundo, do sucesso nas especulações financeiras, considerado como o único índice da riqueza dos povos, e da luta inglória pelos pequenos poderes.
Com exceção dos jovens que pintam paredes e ocupam faculdades, numa forma de luta discutível e até por vezes ridícula, mas que tem o mérito de lançar o alerta, o debate público em Portugal está agora a concentrar-se nas aventuras de um Ministério Público que fez cair um Governo de maioria com uma mera insinuação por escrito e nas suspeitas de favorecimento de duas crianças no SNS. Quando os problemas reais são a ameaça do justicialismo populista, que mina, corrói e visa destruir a democracia, e o enfraquecimento crescente do Serviço Nacional de Saúde e da escola pública, que põem gravemente em causa o Estado Social! Será que a campanha eleitoral já em curso poderá ir além das fugas permanentes ao segredo de justiça e das soluções casuísticas na Saúde e na Educação, para se focar nos reais perigos que enfrentamos, entre os quais a eventualidade de surgir um Governo autoritário, com ainda menos vontade política de enfrentar os problemas reais, substituídos nos seus discursos por confrontos míticos à volta de uma identidade perdida no passado?
Talvez os meninos que pintam paredes e se deitam nas estradas estejam, com os seus métodos de luta irrisórios e até, às vezes, contraproducentes, a ser os lançadores de alertas que nos interpelam e nos convidam a opor ao pessimismo apocalíptico e à indiferença que se generaliza, aquele "otimismo da vontade" que Gramsci contrapunha ao "pessimismo da inteligência".
Seremos capazes de salvar o nosso Serviço Nacional de Saúde e, ao mesmo tempo, contribuir para salvar a saúde e a vida no nosso planeta? Seremos capazes de derrotar a substituição insidiosa do pensamento racional pelos mitos mais primários?
Ali onde cresce a crise, cresce também o que salva, dizia o poeta Hoelderlin. Que assim possa vir a ser!
Diplomata e escritor