Apenas com o céu e o medo por cima da cabeça
O soneto é a mais resistente forma rimada. Sobre a potencialidade e o fascínio do soneto tem sido dito o essencial o constrangimento formal, a estrutura em dois movimentos e a brevidade concorrem para uma densidade conceptual e uma surpreendente maleabilidade sintáctica, num modelo supostamente férreo. Entre nós, o soneto tem sido usado de modo diferente conforme a sensibilidade do poeta. Existe sempre um diálogo com a tradição, mas nalguns casos o acento tónico está na técnica (Vasco Graça Moura), na emoção (Luís Filipe Castro Mendes) ou em ambas (Fernando Pinto do Amaral)
O nosso sonetista mais consistente e insistente tem sido Diogo Alcoforado. De Alcoforado, está disponível o volume de poemas reunido Alguns Pequenos Exercícios (1997) e o mais recente espinho quase sempre (2004). Pobres surge como um volume ambicioso e surpreendente cento e onze sonetos sobre a pobreza. Se o soneto tem uma tradição elevada, conceituosa, com alguma propensão filosófica, é estranho (mas aliciante) ver o texto puxado para a realidade mais bruta e desagradável, a mesma que nem gostamos de reconhecer fora da literatura. É o supremo desafio deste livro: usar um género artificioso para observar o que se passa na nossa rua, entre farrapos e cartões. Em suma: uma poesia rica sobre tema pobre, sobre tema geralmente tratado em má prosa.
Estes sonetos desenham, logo no vocabulário, uma cena cheia de tristeza, desamparo, agonia «Nenhum voo lhe vem por tal tristeza: / aquela que dos olhos se levanta / perante breve rosto - quando canta / a mínima canção e da leveza // do canto vem à luz velho cuidado. / Inclinação da face deixa ver / apenas vão desvelo; e o ser / atento é depois um outro dado // que cerra, sobre si, o sofrimento. / Indivisível som! E tão discreto / sussurro aconchega no pequeno // regaço esse corpo sem alento. / E um choro contido vai directo / à morte que do pó faz seu aceno» (pág. 79). A casa que não é uma casa, o corpo que se deteriora, a perna doente e os dentes. Mas também assuntos que espantariam poetas menos ousados: o envelhecimento a céu aberto, a fome de cão, a solidão sexual do sem abrigo. E a terrível humilhação benéfica de um esmola: «Aceita esse pouco que não traz / consigo qualquer gosto, ou descanso, / ou forma de ser livre se no manso / processo de viver nenhuma paz // ou dádiva, ou perda, lhe convém. / O modo por que vai é inquieto / espelho de seu termo: e se recto / movimento recebe quanto sem // palavras lhe é dado mal acolhe / o dado como dom, ou como graça. / Que gesto será livre quando sente // na pele a moeda que o tolhe? / E um pouco de si morre e traça / na terra o seu fim indiferente» (pág. 74). Poemas materiais, poemas sujos, poemas sobre solidão e unhas, nas nossas cidades, ao anoitecer. Felizmente, Alcoforado não recorre a nenhuma inevitabilidade fadista nem ao discurso ideológico. Quando muito, aproximações a uma linguagem crística: golpe, chaga, cruz, sofrimento. Ou, mais humanamente, o desgosto, a espera do fim, o medo.
Cento e onze sonetos é francamente excessivo, e o livro perde muito com essa abundância, nomeadamente com variações mínimas sobre o mesmo exacto tema. Em termos formais, Alcoforado aproveita para experimentar várias abordagens desde o soneto anafórico, passando pelo soneto entrecortado, sonetos com grande ritmo, com transporte de verso que demonstra sempre notável facilidade com o género. Como se alguém escrevesse naturalmente em soneto. Algumas tentativas são magníficas. Outras, surpreendentes. A maioria, pelo menos competentes. Este, mais clássico, lembra David Mourão-Ferreira «Talvez tudo lhe seja só distância. / Talvez tudo lhe surja do avesso. / Talvez mesmo o tempo do regresso / a si seja a forma da errância. // Talvez tudo, agora, seja triste. / Talvez velha imagem se afaste. / E talvez o lugar onde mal gaste / seus dias seja só o que resiste. // Talvez qualquer passo seja fútil / se o lança num pouco mais de luz; / e talvez só a morte que transporta // o medo seja já perto e dúctil. / E talvez o olhar com que reduz / seu corpo seja só a sua porta» (pág. 90). Noutros casos, a linguagem é um pouco mais obscura, densa, realmente viva.
É curiosa a insistência na palavra «imagem» ao longo dos poemas. Com uma temática muito concreta, muito material, é a própria dimensão imagética que torna alguns poemas mais abstractos, como acontece na grande pintura. De tão material, o universo parece feito de espectros. Esta poesia de escombros lembra sobretudo Raul Brandão (que escreveu Os Pobres) e nada os muitos discursos «solidários» de pacotilha. Em poesia, algum eco (meramente temático) do Guerra Junqueiro tardio, e nenhum rarefacção do realismo com agenda (também chamado «socialista»). A compaixão, nestes sonetos, é muitíssimo discreta, nada impositiva. Sem demagogia, apenas centrada na dimensão humana. Se o sujeito que observa desaparece, o sujeito observado nunca é vítima de aproveitamento. Apenas o homem só, sem nome, sem abrigo, preso pelos mínimos, a sopa, o pão, a moeda. Um poemário corajoso, e poeticamente consistente «Resiste, nesse portal sem resguardo, / havido como único abrigo: / quando um silêncio de perigo / atravessa o ambiente pardo. // Resiste, na humidade cortante, / em leito de cartões amontoados: / sob dois trapos sem peso, doados / por quem os decretou serem bastante. // Resiste, nessa feroz madrugada / de choro e de fome inclemente: / esperando a luz como esmola // com a velha mandíbula cerrada. / E resiste, assim, porque ausente / de tudo sobre si só se enrola» (pág. 84).
Em dois poemas finais, que enquadram a colectânea, Diogo Alcoforado lembra que «pobres somos todos». Nem todos expostos ao frio, à noite e à caridade, mas todos de passagem, numa carne frágil e condenada «Os que choram celebram a passagem / das últimas imagens sobre si: / a dissolução da forma - a ní- / tida morte, a íntima viagem. // Os que choram vêem: estabelecem / riscos, fugas; e, vivos, desconcertam / a presença de quantos, se apertam / os seus membros, do tempo se esquecem. // Os que choram, sofrem; e pelo frio / de cada tarde, ou noite, avançam. / E livres, e despertos, anunciam // a inútil chegada do estio. / Os que choram, agora, já não dançam: / habitam o espaço que temiam» (pág. 9). Este livro de poemas sobre os outros é um livro de poemas sobre nós.