"Aos meus marinheiros não importa se sou mulher, mas sim se tenho espírito guerreiro"

Foi a primeira mulher a chegar a almirante de quatro estrelas na Marinha dos Estados Unidos. Prestes agora, ao 57 anos, a passar à reserva, deixando o comando das forças navais americanas na Europa e África, a almirante Michelle Howard falou com o DN no Museu de Marinha, em Lisboa.
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Quais as razões da visita a Portugal?

Primeiro, tem a ver com a realização do exercício Formidable Shield [até dia 18], envolvendo forças da NATO e da 6.ª Esquadra dos EUA; segundo, o nosso trabalho na direção do Comando Conjunto das Forças Aliadas em Nápoles e para encontros com as chefias da Marinha portuguesa e outros responsáveis sobre o projeto HUB [estrutura de recolha, partilha e tratamento de informação para o flanco Sul da NATO].

"A NATO enfrenta hoje os desafios mais complexos desde o fim da Guerra Fria (...) e neutralizar as ameaças vindas do Médio Oriente e Norte de África deve ser parte essencial da resposta", disse o secretário-geral Jens Stoltenberg em fevereiro, ao anunciar a criação do HUB. De que forma o HUB é parte da resposta?

Em julho, um responsável pelo ACNUR disse-me que há 66 milhões de pessoas deslocadas no mundo - o maior número desde o fim da II Guerra Mundial. Por várias razões: seca, instabilidade, guerras civis, terrorismo. Por estas razões estamos a assistir a um movimento de pessoas, com as proporções que sabemos e que abrange vastas secções do planeta, e que vêm já de sítios tão distantes como o Bangladesh, como me fizeram notar há tempos os colegas italianos. Temos de estar atentos a tudo para compreender o que está suceder.

O que se pode esperar do HUB?

Estamos perante uma vasta região, com problemas distintos. Precisamos primeiro de obter a maior informação possível, em colaboração com os nossos aliados e parceiros, para ter um quadro preciso e determinar as raízes dos problemas. Quando isso tiver sucedido, podemos encontrar soluções. Há outro aspeto importante a referir que é o de termos parceiros de fora da NATO a partilharem informação.

Refere-se à Iniciativa de Cooperação de Istambul (Bahrein, Qatar, Koweit e Emiratos Árabes Unidos), e os mecanismos do Diálogo Mediterrânico, que envolve países do Norte de África?

Sim. Mas também a União Europeia, a União Africana e outras entidades dispostas a cooperarem na iniciativa e partilharem informação.

Numa conferência em Roma, em julho, em paralelo com os artigos 4.º e 5.º, concedeu especial relevância ao artigo 2 do Tratado que instituiu a Aliança, onde se lê que as "Partes contribuirão para o desenvolvimento das relações internacionais pacíficas e amigáveis mediante o revigoramento das suas livres instituições, melhor compreensão dos princípios sobre que se fundam e o desenvolvimento das condições próprias para assegurar a estabilidade e o bem-estar. As Partes esforçar-se-ão por eliminar qualquer oposição entre as respetivas políticas económicas internacionais e encorajarão a colaboração económica entre cada uma delas e qualquer das outras ou entre toda". Estamos perante uma renovação dos fundamentos da sua existência?

Aqui tenho de homenagear os fundadores da NATO, em 1949, entre os quais Portugal, pela visão demonstrada ao inscreverem no preâmbulo do Tratado de Washington ser necessária a existência de uma organização que garantisse a liberdade das pessoas, o respeito pela sua cultura, tradições e património, e que as protegesse. Mas pela conjuntura em que a Aliança surgiu, e como aquela foi evoluindo, os artigos 4.º e 5.º acabaram sempre por serem os mais importantes, porque garantem a certeza de proteção aos Estados membros. Mas há outros artigos importantes. E o artigo 2.º refere-se à importância da estabilidade e, em 1949, os Estados fundadores salientaram ser sua responsabilidade garantirem a estabilidade e promoção do desenvolvimento e do bem-estar das suas sociedades e a definição de estratégicas económicas para isso. Assim, para mim, quando se fala do HUB deve ter-se isso em mente.

A importância da estabilidade?

A contribuição para bem-estar das pessoas e a criação de condições para a estabilidade. Se conseguirmos compreender o que está a acontecer e encontrarmos os mecanismos de cooperação necessários, estamos a ir ao centro dos problemas e saberemos como resolvê-los, criando estabilidade.

Tendo presente a área sob seu comando, que vai do Mar Negro até ao Atlântico, e considerando a atual conjuntura, diria que estamos a viver uma situação que se possa equiparar a uma nova Guerra Fria?

Não vejo nada de guerra fria, pelo contrário [risos]. Basta ver o que está a suceder no Mediterrâneo oriental. Estamos num mundo diferente. Houve o tempo da União Soviética, da Guerra Fria... isso passou. É certo que hoje temos a Federação Russa e as suas ações, mas temos também terrorismo, o Estado Islâmico, algo que não existia na época da Guerra Fria, e vemos até que ponto pode ter um efeito desestabilizador. É um problema de tipo novo. E os refugiados, é um problema que também não existia na época da Guerra Fria. Há muitos e novos problemas e todos em sobreposição. A atuação da Federação Russa no Atlântico, a ameaça do Estado Islâmico na Líbia e na Síria, as migrações causadas por condições naturais ou resultado de situações de instabilidade.

A NATO deveria concentrar-se mais em cenários de guerra assimétrica?

As origens daquilo a que estamos a assistir são conhecidas. A NATO tem de entender o fenómeno do terrorismo e de como o deve combater; tem de entender quem são os potenciais inimigos e como devemos enfrentá-los.

É famosa por causa de Capitão Philips, o filme com Tom Hanks sobre os piratas da Somália. Essa operação que comandou é um bom exemplo dos novos desafios de segurança?

Sim. Se alguém me tivesse dito, há 35 anos quando comecei na Marinha, que iria combater piratas, não teria acreditado. Temos notado que surgem organizações criminosas com novas formas de atuar para tirarem vantagem dos seres humanos e explorá-los. Assim, no campo marítimo, temos a pirataria. A boa notícia é que há muitos objetivos comuns entre as nações e as marinhas. Há forças lideradas pela NATO, que incluem países como Singapura e Coreia do Sul. E há também os países que estão lá por si sós, como a Rússia e a China, e com quem estamos no mar podemos arranjar maneira de nos coordenarmos e cooperar. Tivemos uma reunião no Bahrein em que podia participar quem quisesse e discutir os melhores métodos de atuação. Lembro-me de ter ido a uma sessão e estavam lá 89 representantes de organizações que iam da Interpol à ONU, passando por membros de tripulações que tinham acabado de regressar do mar e queriam partilhar as suas experiências contra os piratas. E esta partilha de informações pode ser contra os piratas no mar, mas também no campo da cibersegurança. É um mundo diferente.

Disse que era famosa por causa do filme, mas é ainda mais famosa como exemplo para as mulheres. Pode contar a sua experiência, até que ponto a situação é diferente comparada coma época em que começou na Marinha?

Comecei em Annapolis, na escola da Marinha, em 1978. E deixe-me só dar uns quantos pormenores históricos para ajudar a compreender quanto tudo mudou: as mulheres chegaram às forças armadas durante a Segunda Guerra Mundial como reservistas. Depois do fim da guerra, o governo decidiu que as mulheres podiam prestar serviço militar ativo, mas apenas serem 2% dos militares e só progredir até à patente de capitão. Não estavam autorizadas a ser generais ou almirantes. E essa lei manteve-se até 1967. E então levantaram-se as restrições. Quando cheguei à Marinha, só havia umas pouco almirantes e a primeira foi a chefe do corpo de enfermagem. E só havia 5% de mulheres na marinha, porque até uns tempos a lei só autorizava os tais %. Eu estava a estudar quando finalmente as mulheres foram autorizadas a irem para o mar. Houve mais mudanças nos anos 80 e depois da operação Tempestade no Deserto a exclusão de ações de combate deixou de existir. Foi quando as mulheres puderam começar a servir em qualquer tipo de navio e eu aproveitei para ir para os anfíbios. Foi uma longa caminhada em que tive a sorte de os meus pais terem a inteligência de me fazer nascer em 1960. Bastava ter nascido uns anos antes e teria perdido todas as oportunidades que vieram com as mudanças na lei. Assim, a minha caminhada reflete as mudanças de lei no meu país. E fez-me compreender que se a lei não autoriza oportunidades iguais para todos os seus cidadãos, não haverá oportunidades para as mulheres e para as minorias.

As Forças Armadas têm fama de estar na vanguarda das mudanças na sociedade americana. Concorda?

Para nós isso acontece porque muitas vezes há um líder que diz que tem de ser desta maneira: assim, quando pensamos no final da Segunda Guerra Mundial, foi o presidente Truman que criou a integração racial nas forças armadas. Penso que logo em 1947 ele disse "vamos ter certeza que os nossos militares são integrados porque é o que está certo". Mas a nível nacional, mudanças da lei nesse sentido só aconteceram a partir de 1954, quando o Supremo Tribunal ordenou a integração racial nas escolas. Assim, temos estes líderes que dizem " isto está errado e temos de fazer isto que é o que é correto" e os militares tendem a estar um pouco na dianteira daquilo que acontece na sociedade em geral.

Lembra-se ainda de como foi comandar pela primeira vez um navio?

Já havia outras mulheres a comandar navios quando calhou a minha vez. Por isso, foi sobretudo interessante na minha primeira missão ter sido enviada a países onde as mulheres não tinham grande papel nas forças armadas. E algumas vezes eu aparecia, era o comandante, e do outro lado não sabiam bem como reagir à surpresa. Recordo-me de um dia na Arábia Saudita reconhecerem-me e dizerem "sei quem é, uma capitã africano-americana famosa" [risos]. E acrescentou: "podemos trocar quépis?". [risos]. Lembro-me também de ter ido à Austrália e havia câmaras de televisão no cais porque sabiam que a bordo mandava uma mulher. E uma jornalista perguntou-me: "é mais difícil ser uma mulher comandante do que um homem comandante?" E eu respondi: "não sei, nunca fui um homem comandante. Não posso fazer a comparação" [risos].

É sempre descrita como mulher e africano-americana à medida que ascende. Nos EUA, já houve um presidente negro, Barack Obama, mas Hillary Clinton falhou e por isso continua sem haver uma mulher presidente. É mais difícil ser bem sucedido como mulher ou como negra?

Não nos podemos dividir enquanto pessoa. Se é mais difícil porque o nosso cabelo é assim ou...

Mas quando olha à sua volta?

Uma das coisas que faz com que seja um privilégio ser líder nas Forças Armadas é que as pessoas, não importando que aspeto tem, juntam-se pela mesma razão: servir o país e defender a constituição. Isto significa proteger os cidadãos americanos. Assim muitos dos obstáculos que eu poderia ter encontrado fora das forças armadas não existem da mesma forma porque as pessoas estão motivadas por um propósito. Não se importam se sou mulher ou negra, os meus marinheiros importam-se sim se eu sou competente e se tenho espírito guerreiro.

[ARTIGO:8755768]

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