Ao segundo sinal
Uma das coisas melhores e das coisas piores de uma relação à distância é a diferença de hora. Mas a diferença de hora é uma coisa complexa e que pode acontecer mesmo quando se vive no mesmo fuso. E fusos, já se sabe e está nas histórias, são coisas que podem matar as princesas, ou pelo menos adormecê-las à espera do príncipe encantado que é uma morte ainda mais cruel, mas com que muitas se continuam a suicidar. Isto tudo porque a semana que passou mudou para quatro horas apenas a diferença de hora com a minha relação à distância, que é a América, América não, apenas a costa leste, que é onde está o meu coração. E esta passagem para as quatro horas corta-nos os ritmos. Mas quando isto for lido já passou, é domingo e já está de novo nas cinco horas, acho, mas é uma questão de ir à internet ver.
Havia, não sei se ainda há, um número de telefone para onde se ligava para saber as horas. Chamava-se-lhe, por isso mesmo, as horas. Liga lá para as horas para saber que horas são, acho que o relógio está sem pilha, já deve ser mais tarde do que nove e meia, acho que isto parou. Não me lembro do número das horas, seria o 151?, uma gravação, voz de mulher, dizia ao segundo sinal serão dez horas, trinta e três minutos e vinte segundos, beeeeep, beeeep. O segundo beep era o segundo sinal, aquele no qual seriam as tais horas certas. Sempre achei aquilo do segundo sinal uma especiosidade, especiosidade do tempo, talvez por nunca acertar relógios porque nunca os usei até ter telemóvel. Antes de ter telemóvel tinha vídeo, e depois disso tive micro-ondas, mas ver as horas no micro-ondas tem o problema de 00.43 tanto poder ser meia-noite e quarenta e três minutos, como um apressadinho esfomeado que interrompeu o aquecimento do prato de sopa antes de chegar ao zero, sempre em ambos os casos com o risco de a luz ir a baixo durante a noite porque alguém ligou o Dimplex no máximo, ficarem as horas a piscar, e depois, claro, ser preciso ligar para as horas para saber que horas são, e saber como acertar os ditos relógios, que nuns casos é fácil mas noutro é mais complexo, que uma vez tive um micro-ondas de dois andares muito sofisticado, foi um presente da LP para a casa nova, e a tentar acertar-lhe o relógio depois de a luz ter ido abaixo, pressionando cinco segundos no botão que parecia ser o certo, ficou bloqueado por segurança, e depois foi um sarilho para o desbloquear, é que desbloquear um micro-ondas é mais complicado do que sabermos onde está o papel com o PUK do telemóvel, ou a chave da mala de viagem.
Se calhar ainda há uma lei qualquer do serviço público, daquelas leis que fingiam que era o Estado que mandava nos TLP e na PT e não o contrário, que manda que ainda haja o número das horas, mas não tenho tempo para ver, e o relógio do computador não engana, porque nunca se engana, nem com a mudança da hora. Hoje o único relógio que se engana e nos engana é o do carro, pelo menos o do meu, que é de gama baixa que tenho estima alta, e ainda tem a hora de verão, parece tudo mais tarde mas na realidade não é. E quando muda a hora ao contrário o relógio passa a ficar bem, é só lembrar de não fazer aquela compensação mental. Claro que há sempre um susto de quem anda no carro connosco, que no meu caso não acontece muito, ai que susto já percebi, ainda tens isto na hora antiga, pensava que já eram seis.
Porque a gente no fundo no fundo gosta e não gosta da mudança da hora, mas o espaço mediático, como em tantas coisas, é só ocupado por aqueles que se queixam da mudança da hora, os piegas do DST, DST de daylight saving time, não DST de doenças sexualmente transmissíveis, que isso é caso para se ser piegas e, dizem os jornais, que há para aí cada vez mais disso agora que a geração dos xoxo com Tinder se convenceu de que a sida não mata, que é tipo uma diabetes mais levezinha, sem injeções nem nada.
A hora de verão é uma decisão que já não nos cabe, que perdemos com a Europa, mas não é coisa pacífica, e é sempre grande a controvérsia lá na Europa, no Parlamento Europeu, discussão que volta todos os anos, lá está, quando a hora muda. Neste ano quem agitou as coisas foram os finlandeses, com uma petição assinada por mais de setenta mil pessoas (por acaso não encontrei referência à percentagem de homens e mulheres) que querem abolir a mudança da hora. Mas eu gosto. A Agustina, na sua arrogância compassiva, dizia que as doenças eram as viagens dos pobres. A mudança da hora é o jet lag forçado das famílias, um domingo tudo trocado, como se tivéssemos feito uma viagem a outro país.
E o tema dava pano para mangas, por exemplo, a injustiça relativa de os galegos terem a mesma hora dos catalães, de não poderem ter a nossa hora, que ainda por cima é a de Londres (será que o Fugidemonte quer ter uma hora diferente de Espanha?). Mas dão-nos cada vez menos tempo. Agora é hora de me fazer à família, a quem falto sempre com tanto tempo. Vou continuar a sonhar com o cargo de maior poder de Portugal, o de presidente da Comissão Permanente da Hora, os senhores que mandam no tempo, que dizem que horas são. Mas diz a lei que tem de se ser presidente do Observatório Astronómico de Lisboa, e para isso eu não tenho estudos. Tivesse eu amigos em lugares importantes, e conseguíssemos enganar a CRESAP e a geringonça, era isso que eu queria para mim, a comissão não me escapava. E ao segundo sinal os dias teriam vinte e oito horas.