Ao fim de dois anos, o vírus da gripe está aí. É o H3N2 e está a infetar os mais jovens

O boletim de vigilância da gripe indica que o vírus a circular em Portugal é o H3N2 e que está a iniciar uma atividade com tendência crescente e consistente. O que significa que, após ter estado dois anos mais adormecido, o país deverá registar um pico fora de época. A coordenadora da rede de vigilância do INSA diz ser preciso proteger grupos vulneráveis, porque é um vírus poderoso, associado a mais efeitos graves e mortalidade.
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Ao fim de dois anos de covid-19, o vírus da gripe voltou a manifestar-se, e com uma tendência que tem vindo a crescer desde o mês de fevereiro. Em Portugal, e à semelhança do que se está a passar noutros países europeus, avizinha-se um pico fora de época, mas normal do ponto de vista da doença, segundo explicou ao DN a coordenadora da Rede Médicos Sentinela, do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), que centraliza a vigilância deste vírus.

"Estamos a observar um aumento de doentes com gripe nos casos que recorrem aos hospitais, quer nos doentes que são atendidos nos serviços de urgências quer nos internados, há quatro semanas consecutivas, havendo uma consistência no aumento de casos de semana para semana que era habitual nos meses de dezembro e janeiro. E não se espera uma redução de casos nas próximas semanas." Ou seja, o pico que se adivinha "não será diferente do de outra epidemia de gripe, o que tem de diferente é o tempo em que se está a manifestar em relação ao que era o seu histórico", sublinhou Ana Paula Rodrigues.

Para já, o que se sabe é que o vírus a circular é do tipo A (gripe A) e sobretudo do subtipo H3N2, um vírus mais poderoso, que nos invernos em que tem sido detetado tem provocado um excesso de mortalidade nos mais idosos. Mas, até agora, os casos detetados em Portugal - dois pela Rede Sentinela e 165 pela rede laboratorial dos hospitais, só na semana passada - foram em adolescentes e jovens adultos, o que pode estar a contribuir para que, apesar da tendência crescente da atividade gripal, ainda não se tenha registado nenhum caso de internamento em cuidados intensivos ou mortalidade fora do normal.

"Ainda não tivemos um único caso de internamento por gripe reportado pelas 33 unidades de cuidados intensivos que participam na vigilância da gripe. O vírus está a circular de forma esporádica desde outubro do ano passado e até agora também não foi registado um nível de mortalidade fora do que era habitual no período pré-pandemia", confirma a médica de saúde pública. "Temos detetado um caso de morte por semana, e nem todas as semanas", especifica a médica.

O porquê de um pico fora de época e o porquê de estar a afetar mais população jovem parece estar associado à evolução da pandemia. Agora, quanto tempo é que poderá durar este pico, e se poderá haver outros no decorrer da primavera e do verão, Ana Paula Rodrigues diz não ser possível determinar neste momento. Até porque há dois anos que o perfil da epidemia da gripe também tem vindo a mudar com o impacto da covid-19.

"O que está convencionado para o hemisfério norte é que o período de vigilância da gripe decorra entre os meses de outubro e maio do ano seguinte, sendo que o pico deste vírus pode durar entre oito e dez semanas", explica. "Era habitual começar a diagnosticar casos em outubro, que aumentavam em dezembro e em janeiro. Quando chegávamos a março a atividade gripal estava terminada", acrescenta.

Mas agora não se sabe se será assim tão linear, porque o vírus da gripe registou algumas alterações na sua atividade. "Foram dois invernos em que a população esteve muito mais protegida, quer devido aos confinamentos decretados, que levaram ao teletrabalho e à telescola, como devido às medidas de proteção individual, uso de máscara e outras que levaram a menor atividade do vírus da gripe. Por exemplo, no ano passado, tivemos surtos importantes de infeção, sobretudo em crianças e no verão. O vírus circulou num período completamente diferente do que era habitual", recorda.

Neste ano, "estamos a ter agora um perfil epidémico, com um número expressivo de casos semana a semana e com uma tendência crescente, mas tudo o que possa dizer nesta altura sobre sua duração é especulação. O habitual era que os vírus respiratórios circulassem maioritariamente no inverno, a partir daqui vamos ver. Poderemos é fazer algumas comparações históricas com outras epidemias de gripe antes da pandemia, em que os picos duravam habitualmente nove a dez semanas em Portugal. Esta é a nossa expectativa para agora, mas ainda não conseguimos determinar quando se atingirá o pico de gripe e o tempo que vai durar".

O que se sabe é que, muito provavelmente, este aumento atividade gripal em 2022 estará associado ao alívio das medidas de restrição impostas para a covid-19. "Muito provavelmente está relacionado, porque, neste momento, a covid-19 já não tem a gravidade que tinha anteriormente, muito devido à vacinação, e há um nível de interações sociais já muito semelhante ao que existia no período pré-pandemia, sendo normal que os vírus respiratórios, que até aqui mantinham uma circulação mais limitada, pela ausência destes contactos interpessoais, aumentem a sua circulação", argumenta.

DestaquedestaqueA 10 de março, o relatório da DGS sobre a vacinação da gripe dava conta que até áquela altura estavam vacinadas 2 599 104 de pessoas contra a gripe.

De acordo com o boletim de vigilância da gripe, a incidência registada até agora de síndrome gripal e de infeções respiratórias agudas foi de 15,1 casos por 100 mil habitantes, mas, segundo explicou ao DN, este valor pode estar subestimado, pois a interpretação da situação está a ser feita sobretudo com base na rede laboratorial dos hospitais, deixando para trás os casos mais ligeiros e detetados nos cuidados primários.

De qualquer forma, o que indica a vigilância do vírus da gripe é que "este está numa fase inicial e com apresentações semelhantes às dos anos anteriores, estando a afetar sobretudo adolescentes e jovens. Por isso, não há ainda um reflexo no aumento de pessoas internadas, em particular nas UCI". Os sintomas registados até agora também não são diferentes dos registados em outras epidemias anteriores.

"Os sintomas da gripe tipo A ou B ou dos subtipos H1N1 ou H3N2 não são clinicamente diferentes. Só é possível fazer a distinção após as pessoas serem testadas e as amostras analisadas de forma a identificar-se o tipo e o subtipo do vírus e, nalguns casos, fazer-se a caracterização genética e antigénica do vírus."

Uma caracterização que permitiu perceber que nos invernos em que é identificado o vírus H3N2 houve doença mais grave nas pessoas mais velhas e um excesso de mortalidade. "Historicamente tivemos vários invernos em que houve excesso de mortalidade provocada por este vírus. Não é o caso de agora. A mortalidade está em níveis normais", refere. No entanto, e por já se saber isto, a especialista alerta para o facto de ter de se proteger os idosos e os grupos mais vulneráveis, recomendando mesmo que se sigam as medidas de proteção adotadas no combate à covid-19. "Agora, e depois desta experiência de dois anos com a pandemia, temos mais propriedade para definir recomendações para o vírus da gripe", sublinha.

A médica refere ser importante a vacinação dos grupos de risco, salientando que "a vacina da gripe, tal como a da covid-19, não protege contra todas as infeções, mas confere aos grupos mais vulneráveis uma proteção significativa contra a ocorrência de complicações graves".

A coordenadora da rede de vigilância da gripe recomenda ainda que, ao primeiro sinal de sintomas da gripe, as pessoas devem proteger-se a si e aos que estão à sua volta, adotando regras de proteção individual, como o uso de máscara, que, no fundo, "impediram a circulação do vírus da gripe nos dois anos de pandemia".

Destaquedestaque"A gripe é uma infeção respiratória com impacto importante nos serviços de saúde, no número de urgências e de internamentos, e na mortalidade".

O uso de máscara deve ser uma prioridade, "sobretudo quando se está em contacto com pessoas mais idosas, crianças muito pequenas ou grávidas". Por outro lado, deve também evitar-se "ir trabalhar e os grandes aglomerados de pessoas", reforçando: "Já todos percebemos que estas medidas são de simples utilização e têm um impacto importante na redução do risco de infeção, sobretudo na proteção dos mais vulneráveis." E não podemos esquecer que "a gripe é uma infeção respiratória com impacto importante nos serviços de saúde, no número de urgências e de internamentos, e na mortalidade".

Para Ana Paula Rodrigues, o que se tem a fazer agora, e perante o período de atividade gripal que se adivinha, é "conseguir proteger os grupos vulneráveis". Aliás, a estratégia de combate ao vírus da gripe passa muito por aí, já que tem por base uma campanha de vacinação destinada a estes grupos. Em Portugal a campanha de vacinação contra o vírus da gripe dirige-se aos mais idosos, a partir dos 65 anos, a grupos vulneráveis pelas suas comorbilidades e profissionais de risco. Noutros países, como os EUA, a população já é vacinada independentemente da sua idade.

A covid-19 está mais controlada e a sua vigilância e monitorização vão sofrer alterações. Neste momento, a informação sobre o número de casos e de óbitos já é semanal. E, na última reunião entre peritos e políticos, no Infarmed, os especialistas que apoiaram o governo no combate ao SARS-CoV-2 nestes dois últimos anos propuseram que a vigilância fosse integrada na Rede Médicos Sentinela que faz a vigilância da gripe. Ana Paula Rodrigues confirma que será assim e que, neste momento, se está na fase de planeamento e de reforço da estrutura para que esta vigilância comece em pleno no mês de outubro.

"Estamos numa fase de planeamento, o que envolve a definição dos protocolos de vigilância, mas também contactos com parceiros, instituições de dentro e fora do Ministério da Saúde, para conseguirmos ter um sistema de vigilância da gripe e da covid-19 melhorado e reforçado no próximo outono-inverno", afirmou, especificando que o objetivo agora é reforçar a Rede de Médicos Sentinela

"É preciso um maior número de médicos nos cuidados primários a participar nesta vigilância, que estejam geograficamente mais dispersos, e mais hospitais também. Os médicos de família identificarão os doentes mais ligeiros e os hospitais os mais graves. E com essa informação conseguiremos também estimar a efetividade das vacinas, quer da gripe quer da covid contra a infeção mais ligeira e mais grave."

No início do verão, a coordenadora da Rede Sentinela espera ter já várias unidades piloto a funcionar com este tipo de vigilância dupla, gripe e covid-19. O objetivo deste sistema é melhorar e intensificar a vigilância dos vários vírus respiratórios, quer no terreno quer a nível laboratorial. Aliás, atualmente, já há uma integração da vigilância da gripe e da covid no laboratório do INSA que monitoriza a gripe.

"Desde março de 2020, que todas as amostras que chegavam pelo programa da vigilância da gripe eram testadas para o vírus da gripe, mas também para outros vírus respiratórios, nomeadamente para o SARS-CoV-2", refere.

DestaquedestaqueMelhorar e reforçar a viglância dos vírus respiratórios é um dos objetivos que levou à integração da vigilância da covid-19 também na Rede de Médicos Sentinela, a quem compete também a vigilância da gripe.

Mas este reforço da vigilância passará também por reativar sistemas mais participativos de vigilância que têm estado inativos. "Queremos integrar nesta vigilância outros sistemas de vigilância epidemiológica mais participativos e que funcionam a nível nacional. Um deles é o gripe.net, que inicialmente era coordenado pelo Instituto Gulbenkian da Ciências, mas que, entretanto, passou para a coordenação do INSA. É um sistema que permitirá o registo de cada cidadão numa plataforma digital, para que, semanalmente, vá registando se tem ou não sintomas de gripe e a sua evolução", explica.

Os dois anos de predominância do vírus SARS- CoV-2 trouxeram alterações à atividade do vírus da gripe, que está agora a manifestar-se fora de época. Não só em Portugal, mas também em outros países da Europa. De acordo com o boletim de vigilância da gripe há sete países, Eslovénia, Hungria, Itália, França, Luxemburgo, Irlanda e Reino Unido, que apresentam nesta altura uma taxa de deteção laboratorial do vírus da gripe acima de 10 %.

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