A geringonça - termo cunhado como depreciativo e atirado como um insulto - rapidamente foi acarinhada pelo país. Afastar a direita do poder, parar a política de empobrecimento, aliviar os sacrifícios da brutal austeridade de PSD e CDS, foram os méritos iniciais da solução política encontrada em 2015. O PS fintou uma derrota política e assumiu o governo, Bloco de Esquerda e PCP mostraram que eram úteis os votos que tiveram. A consequência foi a recuperação de condições de vida e de rendimentos..O início foi revelador: a recuperação de rendimentos do trabalho, salários e pensões fintou o vaticínio catastrofista da direita e afirmou o seu carácter virtuoso no crescimento da economia. Quando confrontamos o caminho percorrido e o programa eleitoral do PS, percebemos que houve mesmo um desvio à esquerda. Num só ano foram eliminados os cortes inconstitucionais aos salários, descongeladas todas as pensões e alcançados aumentos extraordinários, repostos os feriados roubados, reduzido o IRS, aumentado o salário mínimo nacional, alargado o alcance da tarifa social da energia a 700 mil famílias e eliminado corte no valor do subsídio de desemprego, tudo medidas ausentes do programa eleitoral do PS ou em direta contradição com este..O rol de medidas que demonstra esse fulgor inicial poderia continuar com o combate à precariedade, a reversão dos cortes nos apoios sociais de combate à pobreza (RSI, CSI, abono de família), a suspensão de penhoras e vendas executivas de imóveis de habitações permanentes por dívidas fiscais, ou o alargamento dos direitos e liberdades individuais..A pergunta que se colocava era como o PS se estava a relacionar com a esquerda: convertido, encantado, convencido ou, simplesmente, vencido? Como as sondagens davam conta de uma aprovação positiva do PS, tudo era um mar de rosas e os dirigentes do PS os mais fervorosos adeptos da geringonça. "Enriqueceu a democracia. A solução é boa, produz bons resultados", António Costa dixit. Mas o tempo passou e o vento mudou, nomeadamente na transição para 2018..Principalmente desde o início do ano que António Costa parece agastado com a atual solução política. A julgar pelo congresso recente do PS, poderá concluir-se que esta foi um parêntesis na história de um partido centrista, resultante de circunstâncias irrepetíveis e com uma conjuntura que o tornava incontornável para a sobrevivência do partido e do seu líder. O PS mostrou o seu ADN?.A segunda conclusão fica-se por um dos mais antigos sentimentos do mundo, a soberba. Bloco e PCP estão no bolso, terá pensado Costa, pois não arriscariam chumbar o último Orçamento do Estado da legislatura e criar uma crise política. O eleitorado de esquerda está no bolso, terá pensado também, porque a geringonça já teria restaurado a pintura socialista ao PS. A partir daí, a política foi transformada em jogo de xadrez e António Costa apostou ao centro para a maioria absoluta angustiadamente desejada..A terceira ideia decorre da conclusão anterior: se a disputa passaria a ser ao centro, a mudança de liderança no PSD deveria ser aproveitada. Mal teve alguém do PSD a estender a mão, Costa nem hesitou na escolha. Rui Rio agarrou com as duas mãos a oportunidade e logo lançou a rede a alguns acordos de regime. Deslumbrado, Costa nem percebeu que esse era um presente envenenado, que serve mais para legitimar um PSD moribundo do que para beneficiar o PS..O que está a acontecer neste primeiro semestre de 2018? António Costa perdeu a estrelinha, demonstrou que as suas escolhas são mero jogo político. E dá razão ao Bloco de Esquerda: a ausência histórica de entendimentos à esquerda não foi defeito da esquerda. Foi feitio do PS. E só aconteceram em 2015 porque a esquerda teve força para os impor e o PS não teve força para lhes resistir..O mel com que a esquerda era tratada passou recentemente a fel. Os "parceiros preferenciais" de Carlos César no Parlamento são agora apelidados de "extrema-esquerda" sem "sentido de responsabilidade". O grupo de trabalho com o Bloco de Esquerda para combater a precariedade foi substituído pela "concertação parlamentar" com a direita, para aprovar leis que fomentam a precariedade..É motivo para atirar a toalha ao chão e dizer que nada mais há a fazer? Pelo contrário, não chegámos aqui por ficarmos à espera do PS. Foi porque a mobilização popular fez a diferença. Assim continuará a ser..A terminar: o DN está em mudanças e também eu mudarei para outras paragens. Que o futuro seja interessante para a nova aventura jornalística..Líder parlamentar do Bloco de Esquerda