António Victorino d'Almeida: "Eu sou Esquerda, mas agora já não sei onde está. Estamos a viver um período de... canhotismo"

10 perguntas à queima-roupa, 10 respostas na ponta da língua. Nesta rubrica, o DN desafia personalidades a comentar assuntos quentes do país e do verão. Hoje é a vez do compositor, pianista e maestro português, Victorino d'Almeida.
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Estado da Cultura?
Ora bem, Portugal ainda tem uma grande e secular cultura, e essa cultura secular felizmente é imune a percevejos, imune a tudo o que sejam vírus e bicharocos desagradáveis e tal. E, portanto, eu insisto sempre em dizer que nasci num país que tem uma grande cultura, e tem. Se se refere ao estado de uma coisa a que chamam cultura, atualmente, eu não tenho nada a dizer, porque é a mesma coisa que fazer um comentário sobre uma formiga, pronto, é uma formiga, anda ali.

Peça Musical que goste muito e a que volte sempre.
Isso há muitas, muitas. É que eu não lhe queria mentir. Eu podia inventar aqui uma e dizer-lhe a Valsa de Ravel, ou o Dáfnis e Cloé de Ravel, ou sei lá, mas assim é um bocado complicado. Sendo honesto a responder, é consoante as situações. Tem havido ultimamente situações em que eu tenho ouvido muito Bach e Jacques Brel, por exemplo. Portanto, ouço de tudo, consoante a situação em que estou. Agora, dizer-lhe realmente que há uma música que é a minha preferida, não. Estava a mentir descaradamente.

Música pimba.
Não tenho nada contra a música pimba. Também tem a sua organização, mas não me importa. Até acho piada ao Quim Barreiros. Se me perguntasse se eu ouço, isso é outra história. Mas posso ouvir em condições específicas. Acho que num Arraial, no Minho, está tudo certo. Não há nenhuma razão para não se pôr música pimba. E já agora que ponham boa, porque há boa, dentro do estilo: há o bom, há o mau e há o péssimo.

Esquerda ou Direita?
Eu sou Esquerda. Agora já não sei onde é que ela está, portanto, não sei. Tanto é que nós estamos a viver um período de... a palavra não existe, mas de canhotismo,. Não se percebe nada. E quando se quer perceber, é pior.

Um desígnio para Portugal?
Ter uma capital. Todos os países têm, por que é que Portugal não há de ter? Porque Lisboa não é uma capital, não é. Não é agora. Lisboa não tem comparação com qualquer outra capital europeia que eu conheço. Não tem ópera. Tem um concertozeco por semana lá na Gulbenkian. Mas é uma cidade sem concertos, sem ópera, sem museus. Não me venha cá convencer de que o Museu Gulbenkian é um museu. É um museuzinho, é uma coisinha, que ali está. Mas o que são 20 ou 30 quadros?. Há um, não sei como é que chama, de arte contemporânea, que tem espaços de três metros entre cada quadro, que é para preencher o espaço. É impossível. Vamos depois para outras coisas. As pessoas não leem. Não leem. Acabou-se. O que é que há em Lisboa em termos culturais? Porque uma capital tem de ser a capital da cultura. E esta capital não cumpre. Não cumpre minimamente. Chega-se à noite e se eu quero ir a um sítio... Queria ouvir jazz e não há.

Uma viagem que o marcou?
Foram duas, a Roma. Uma foi com a minha filha: ia lá tocar com a orquestra dela - eram miúdos da escola dela e eu levei a minha mulher e o meu pai. E foi uma viagem em que eu não fui trabalhar, o que era uma coisa raríssima, quase caso único. E foi o caso do convite de um amigo de Elvas, o Luís Zagalo. E a verdade é que eu conheci o Papa. Quando digo Papa, é este Papa. E realmente é uma figura incrível, fascinante, de facto. É um revolucionário. É um revolucionário que está dentro de um Exército. Obviamente tem de respeitar X regras desse Exército, porque senão põe-no fora e deixa de ter força. É apenas alguém a pregar no deserto. Assim, como é Papa, as coisas que ele diz, eles não gostam de ouvir, mas têm de as ouvir.

Novos talentos na Música.
Isso aí é uma maravilha. Portugal tem tanto jovem músico com talento. Absolutamente extraordinários. E muitos, e muitos. Há um amigo meu que está a fazer um programa que organiza coisas. O Miguel Leite, que organiza, quando pode, concertos em vários sítios e, em Valença, tem lá levado jovens músicos portugueses, com uma qualidade incrível: pianistas, flautistas, harpistas...

E noutros estilos?
Já não se passa o mesmo - e é pena, porque eu sou a favor de vários estilos de música, de várias espécies de música - na música pop, que está nas ruas da amargura, e faz falta. E depois dizem que não gosto de música pop. Não, desculpe, eu não gosto é de má música. E coisas em que estão apenas ali uns sujeitos, a ganir, claramente. Sempre a mesma nota, sempre no mesmo tom... E as pessoas a sentirem-se obrigadas a dar saltinhos. Porque parece mal se não derem pulinhos...

Sonho por cumprir?
Tenho muitos. A vida não muda de estatuto pelo facto de os anos passarem. Por exemplo, eu não ouvi 80% da música que escrevi. Tem-se tocado muita coisa minha, mas eu escrevi antes muito mais. Por exemplo, a minha primeira ópera. Acabei de escrever agora uma ópera. Aos 83 anos, por acaso, não é assim uma coisa de muito juízo, mas encomendaram-me uma ópera e eu aceitei - escrevi a ópera e penso que vai ser feita em dezembro: é uma coisa sobre a Constituição da República. É assim um bocado romanceado, como é a ópera. Mas a minha primeira ópera, sobre o Camões, eu estou à espera há 51 anos

O que é o melhor da vida?
O melhor da vida é poder-se gostar dela. E isso é uma coisa que está a ser infamemente recusada às pessoas. Eles chegam pela televisão, até já cheguei a contar, em 20 segundos eles utilizam 10 vezes a palavra jovem. É demais, a que propósito. As pessoas novas fazem parte da vida, como as velhas, como as do meio, como as crianças, todas fazem parte da vida.

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