António Mega Ferreira, 1949-2022. O fervilhante fazedor que sonhou e realizou
"Sem saber, despediu-se da escrita com a generosidade e a inteligência que o caracterizavam, com um livro não só íntimo, mas dedicado a uma matéria que sempre acarinhou no seu percurso - as palavras", o Roteiro Afetivo das Palavras Perdidas.
A frase, o elogio, da Editora Tinta da China que lhe lançou o último livro, em outubro - foram 36 os que escreveu desde o primeiro em 1985 -, encontra respaldo nas palavras, nas pequenas frases, de quem o conheceu de perto, na intimidade, de quem com ele se cruzou na vida. E até mesmo de quem só o leu.
"Uma imaginação fervilhante", "um homem que abominava os medíocres", "sempre surpreendente", "uma das figuras intelectuais mais brilhantes das últimas décadas", "extraordinário perscrutador da vida sensível", "esteta, entusiasta, erudito", "um pensador de rasgo cosmopolita", "um imprescindível", "a ironia mais brilhante", "um homem do Renascimento", "hilariante e impetuoso", "um grande fazedor em tudo" ou - e talvez o mais adequado seja "e" - como o próprio, em 2015, disse à revista Prelo, aquando da edição de Hotel Locarno: "Gostaria de ficar conhecido na história como um tipo que fez essas coisas todas". E todas as coisas são os jornais e revistas (Comércio do Funchal, Jornal Novo, O Jornal, Jornal de Letras, Expresso, Diário de Notícias, Diário Económico, O Independente, Público, Visão, Egoísta), os livros (de ficção, poesia, biografia e ensaio), o Círculo de Leitores, a Ler, a Expo, o CCB, a Orquestra Metropolitana de Lisboa.
António Taurino Mega Ferreira, nascido a 25 de março de 1949, em Lisboa, na Mouraria, na rua Marquês de Ponte de Lima - filho de um comerciante, detentor de uma papelaria na Baixa lisboeta, sócio de uma antiga loja de discos, republicano, anti-salazarista e anticlerical -, que esteve para ser João Miguel por ideia da mãe (venceu o pai a "disputa" pelo nome que juntou os primeiros nomes dos avós paternos e maternos: António Taurino), "não era da área das letras, da História da Arte, nem da arquitetura", diz a museóloga Simonetta Luz Afonso. Era, sublinha a ex-comissária de Portugal na Expo98, um homem de "uma sensibilidade enorme para a evolução das cidades, e a forma como achava que deveriam crescer. Além de todas as qualidades que tinha - sentido crítico, humor, curiosidade - era um grande realizador. Ele sonhava e realizava. Que é uma coisa rara".
E se a Expo98 foi a sua "grande obra", Simonetta Luz Afonso recorda que o escritor e gestor cultural que liderou a candidatura de Lisboa para a Exposição Internacional "teve de batalhar muito para a conseguir realizar, convencendo, não apenas o gabinete de seleção, para escolher a capital portuguesa, mas também o próprio Governo, na altura. Houve muitos críticos que diziam que era dinheiro deitado à rua. Não foi. Fez-se uma grande exposição, um grande evento, que foi temporário, mas muito importante para a zona oriental de Lisboa, que, antes da Expo98, era uma lixeira".
Mega Ferreira dizia, aliás, que a "política é um departamento da cultura (...). A visão política, as opções políticas devem obedecer a uma visão cultural (...). E a visão cultural o que é? É uma visão da sociedade. É tão simples como isto. Mas é uma visão consequente, articulada, coerente do que é a sociedade, do que são as pessoas, de para onde vai a sociedade (...). Toda a opção política deve obedecer a uma visão cultural".
O desalento? É que tudo é o oposto do que deveria ser, "é o capitalismo no seu pior. Isto é o capitalismo na sua versão mais rasteira, aprendida em MBA de universidades neocapitalistas e neoliberais (...), ensinado como pensamento dominante (...), a prudência deste regime de maioria absoluta, para mim, tem as cores do medo".
Em novembro, em entrevista à Rádio Renascença, havia desilusão nas palavras que usou para falar da política, a do mundo e a de cá, não escondendo a sua contestação à excessiva "prudência" da governação.
"Os políticos são tão prudentes, tão prudentes, que se vê que estão cheios de medo. Portanto, vão cedendo terreno. Quando damos por isso, já estamos no charco", afirmou o homem que em tempos se definiu como "socialista não filiado".
Ao Expresso, em 2017, confessava manter-se "ferozmente republicano" e "nalguns dias" quando ouvia "certos políticos a falar" ainda tinha "fortíssimos laivos jacobinos", apesar de "racionalmente" não se poder ser "jacobino no século XXI".
Marcelo Rebelo de Sousa, que recorda o "colega desde o Liceu Pedro Nunes até ao fim do curso na Faculdade de Direito de Lisboa, um amigo de sempre, jornalista da imprensa e da televisão, editor, ficcionista, ensaísta, cronista, poeta, tradutor, gestor cultural", releva o "papel" na "Expo98, que "não foi só um evento temporalmente situado, mas um momento transformador de Lisboa, a cidade sobre a qual Mega Ferreira apaixonadamente escreveu".
Uma paixão que "enquanto gestor (na Expo, depois no CCB, mais tarde na Metropolitana) deixou um pouco na sombra o escritor, ainda que, nas últimas duas décadas, se notasse um renovado empenho nas obras de criação, fossem poemas, romances biográficos, livros de crónicas ou de viagens, monografias, ensaios cultos, até ao seu último livro, um dicionário de palavras que deixámos de usar, mas que mantêm o travo da história vivida e da História coletiva", destaca o Presidente da República.
Um renovado empenho que encontrava no escritor a única "dimensão espiritual" confessada: a poesia, a "arte maior" que o deixava, como disse ao Expresso, "noites sem dormir, [n]uma angústia terrível".
"É a arte da decantação. Digamos que em relação à poesia o meu grau de exigência é obsessivo, quase patológico. Não estou em paz com a minha poesia, e não estando em paz, o melhor é não publicar porque já sei o que me vai acontecer (...). A poesia é, de facto, a disciplina suprema (...). É conseguir chegar abaixo do osso de qualquer coisa que não é osso", disse quando lhe perguntaram da exigência da escrita.
DestaquedestaqueVelório decorre esta terça-feira, a partir das 18.00 no Teatro Camões. Funeral realiza-se quarta-feira, às 16.30, no Cemitério dos Olivais.