António Guterres
António Guterres ganhou as eleições que o levaram a ocupar a presidência do Conselho de Ministros português em 1 de Outubro de 1995, uns meses antes de se realizarem as eleições nas quais o Partido Popular alcançou o poder em Espanha. António Guterres era um líder novo que vinha dos sectores mais moderados, católicos, do socialismo português. Desde o momento em que começámos a conhecer-nos, houve entre nós uma excelente sintonia pessoal que mais tarde se traduziu em várias decisões políticas importantes. Os dois éramos partidários convictos do fortalecimento das relações entre Espanha e Portugal e de trabalhar para superar receios históricos. A realidade de dois países que tinham estado de costas voltadas durante muito tempo nunca tinha feito sentido, menos ainda desde que tínhamos entrado, ambos, na União Europeia. Por conseguinte, havia que enfrentar as relações de uma maneira diferente. Ambos estávamos convencidos de que aquele projecto iria ser benéfico para os nossos dois países e isso facilitou muito a relação pessoal e política.
Por outro lado, rapidamente as nossas famílias começaram a conhecer-se e a apreciar-se mutuamente. Desde o primeiro momento que combinámos que a família de António Guterres viria a Espanha uma vez por ano e que nós iríamos a Portugal com a mesma regularidade. Guterres é um homem muito familiar. Estava então casado com Luísa, uma mulher extremamente inteligente e que foi de grande ajuda na sua carreira. Infelizmente, nessa época estava doente. Guterres sofreu muito com a doença e o posterior falecimento da mulher e eu vivi aqueles momentos tão difíceis muito perto dele que, já então, considerava meu amigo.
A nossa primeira visita a Portugal foi uma viagem de um fim- -de-semana organizado por ele próprio e pela mulher ao Alentejo, à margem de qualquer acto oficial. Era uma região que me interessava e que não conhecia. Visitámos Elvas e Évora, duas cidades muito bonitas. Foi a última vez que estivemos juntos com António Guterres e a mulher, que piorou a partir daquele momento. Recordo com muito carinho aquela viagem cheia de descobertas e emoções.
Também houve momentos divertidos, um em particular, revelador de como podem, às vezes, ser complicadas as relações entre Espanha e Portugal. António Guterres levou-nos a visitar uma quinta no Alentejo onde estavam a levar a cabo um projecto de recuperação da cria cavalar portuguesa. Era um sítio esplêndido, com umas instalações magníficas e uma grande equipa muito bem preparada. Ora bem, tinha rebentado uma polémica nos meios de comunicação social porque o ministro da Agricultura de Portugal não se tinha lembrado de mais nada - perfeitamente lógico, diga-se - senão levar machos jerezanos, de raça pura, para cobrir as éguas portuguesas. António Guterres achava muita graça à discussão, tal como eu, e a única pergunta que me permiti fazer foi se os cavalos jerezanos tinham feito bem o seu trabalho. Como me responderam afirmativamente, dei-me por satisfeito no meu orgulho ibérico, pelo lado espanhol.
Noutra ocasião, António Guterres convidou-nos a subir o Douro de barco a partir do Porto. Embarcámos, percorremos as margens portuguesas do Douro, parámos numa casa rural esplêndida situada sobre uma curva do rio, visitámos algumas das casas que ali possuem as grandes caves de vinho do Porto e vimos como se estão a desenvolver as grandes encostas do rio, cobertas de vinhedo. Não só provámos o porto, como também o vinho do Douro português, um vinho que cada vez ganha mais fama, bem merecida, como o do Alentejo. Essa viagem permitiu-me conhecer as grandes eclusas que o rio Douro tem para regular o caudal e possibilitar a navegação. Constituem uma obra gigantesca que data da época salazarista; hoje, por razões ambientais, seria impossível construí-las.
Naquela viagem, acompanhou-nos a irmã de António Guterres, Teresa, e a filha de António, Mariana. Teresa é uma grande mulher, que tomou Mariana a seu cargo desde que lhe faltou a mãe. Tirámos umas fotografias com umas vistas maravilhosas sobre o Douro e logo algumas revistas, ao publicá-las, comentaram que Teresa era irmã da minha mulher Ana e que mantinha uma relação sentimental com António Guterres. Tinham imaginado que Guterres estaria a fazer a apresentação, quase clandestina, da sua noiva. Infelizmente, a excursão foi interrompida pela notícia trágica de um atentado terrorista em Espanha.
António Guterres também nos convidou para visitar a Madeira porque sabia que Ana e eu tínhamos passado a nossa viagem de núpcias ali e já lá não voltávamos desde então. António Guterres acompanhou-nos e mostrou-nos a ilha com um carinho e uma atenção próprios dele, e, também, muito tipicamente portugueses. É um viajante empedernido e todos os anos prepara uma grande viagem com uma minúcia tal que suspeito que desfruta tanto com a preparação como depois com a jornada.
Pelo nosso lado, Guterres costumava vir com a filha e com a sua irmã Teresa às Baleares. Costumávamos passar alguns dias a navegar pelo Mediterrâneo, convidados por Abel Matutes, que fazia de anfitrião. António Guterres conhece muito bem Espanha, fala um espanhol impecável e o que mais o interessava era precisamente navegar e descansar no barco. Numa ocasião, o meu filho Alonso, que teria então uns doze anos, interveio numa conversa durante a qual tínhamos aberto em cima da mesa um mapa da Península Ibérica. Alonso aproximou-se, olhou para o mapa e disse o que pensava com total sinceridade "A verdade é que quando olho para o mapa não entendo porque é que Portugal não é Espanha." A princípio, ficámos um pouco surpreendidos, mas logo começámos a rir e, depois de eu o repreender um pouco pela insolência, António Guterres explicou--lhe em traços largos a história dos dois países. Alonso, que é bastante teimoso, não voltou atrás e pareceu não ter ficado muito convencido nem com a minha repreensão nem com as explicações de António.
Recordo também várias visitas ao Estoril e a Cascais, assim como ao Algarve, onde realizámos uma cimeira especialmente importante a que me referirei a seguir. Em Espanha, realizámos uma em Salamanca e outra na Galiza.
António Guterres e eu partíamos da seguinte ideia a história dos nossos países é um facto que ninguém pode mudar, mas podemos, isso sim, se o quisermos, estabelecer uma relação nova. O facto de pertencermos à União Europeia tinha mudado a situação e era absurdo que continuassem a acontecer determinados desajustes. Por exemplo, naquela época, Espanha e Portugal não estavam ligados por auto-estrada em nenhum ponto da fronteira, pelo que impulsionámos um programa de desenvolvimento de infra-estruturas para superar uma deficiência tão primária. Junto com António Guterres, inaugurámos três ligações por auto-estrada entre Espanha e Portugal, uma na Galiza - a do Porto à Galiza - outra na Extremadura - por Badajoz - e a terceira, a do Algarve e Huelva por Aiamonte. Começaram também a desenvolver- -se outras duas ligações.
Graças a essas iniciativas, a zona tinha iniciado um desenvolvimento consistente e espanhóis e portugueses movem-se num espaço comum, para o qual a existência da fronteira não é um obstáculo. Espanhóis e portugueses partilham o espaço geográfico da Península Ibérica. Partilhamos também um mercado comum na União Europeia. Temos uma moeda comum. Assim sendo, como é possível não virmos a ter um mercado comum ibérico? Como poderíamos não tentar aproveitar tudo isto para colaborar e progredir juntos? Evidentemente, a dimensão económica espanhola obriga a tratar o assunto com sensibilidade e com delicadeza, mas isso não deveria impedir a colaboração.
Foi na cimeira do Algarve de 1998 que tivemos a oportunidade de abordar um dos temas pendentes mais importantes, que eram as questões hidrológicas. Desde há muito que constituíam um problema entre Espanha e Portugal. Sendo a geografia o que é, houve sempre algum português que caía na tentação de profetizar perante os seus compatriotas que os espanhóis lhes iam cortar a água. Do mesmo modo, sempre houve algum espanhol a quem ocorreu a grande ideia de propor este recurso para pressionar os portugueses. Na cimeira do Algarve, demos por encerradas estas excentricidades nocivas, chegámos a um acordo histórico e resolvemos definitivamente o problema hidrológico que se arrastava há séculos entre Espanha e Portugal. Constato com uma certa melancolia que o que conseguimos resolver com Portugal não resolvemos, por outro lado, no nosso próprio país.
Os intercâmbios económicos chegaram a um nível extraordinário, até ao ponto de Portugal se ter convertido num dos principais sócios de Espanha. Revelaram-se de grande importância a presidência portuguesa da União Europeia, a cimeira ibero-americana que se realizou no Porto, onde se deu o meu encontro com Fidel Castro e recebemos a notícia da detenção de Pinochet em Londres. Também pusemos em marcha a Agenda de Lisboa, na cimeira realizada no ano 2000 na capital portuguesa, uma iniciativa de Blair e minha a que Guterres, que mantinha posições reformistas, também se juntou.
Tivemos algumas divergências porque, em algumas ocasiões, os interesses de Portugal e de Espanha na Europa não eram convergentes, mas tentámos sempre manter uma linha de apoio mútuo quando, como acontecia quase sempre, os interesses de cada um de nós não eram opostos. Recordo apenas um momento delicado, quando a Espanha se integra na estrutura militar da NATO. Portugal é um país atlântico por definição, com uma grande história atlântica e atlantista. Os portugueses sentiam receio que, atrás da nossa integração na estrutura militar, viesse a mudança da base da NATO que têm no seu território, para Espanha. Houve alguns sinais de desconfiança da parte portuguesa durante a nova partilha de comandos da NATO, o que motivou uma visita de António Guterres a Madrid, durante a qual, depois de alguns momentos de discussão sincera e aberta, resolvemos o assunto sem problemas de maior.
Curiosamente, em 1999, Guterres tinha sido eleito presidente da Internacional Socialista e eu fui eleito presidente da Internacional Democrata do Centro, com o que dois amigos, um espanhol e outro português, nos encontrámos presidindo às nossas respectivas organizações internacionais.
António Guterres é um homem culto, preparado, com um grande dom da palavra, com um carácter amável e afectuoso. Apresentou-se à reeleição como primeiro-ministro em 2000. Foi reeleito, como se sabe, mas não conseguiu a maioria absoluta por uma margem escassa. Desde o primeiro momento que tive a impressão de que aquilo tinha representado uma grande decepção pessoal para ele. Guterres pensava que tudo o que tinha sido realizado em Portugal justificava uma maior margem de confiança por parte dos eleitores. Na minha opinião, ficar a três lugares da maioria absoluta constituía um resultado magnífico e disse-lho em múltiplas ocasiões, recordando-lhe qual era a nossa situação nas Cortes entre 1996 e 2000. No entanto, aí começou a mudar algo de muito profundo na atitude de António Guterres. Apareceu na sua vida uma nova mulher, Catarina, inteligente e atractiva, que tinha sido secretária de Estado da Cultura.
Como consequência de tudo isso, depois da derrota do seu partido nas eleições autárquicas de 2001, Guterres apresentou a sua demissão. Eu insisti que, depois de umas eleições autárquicas, um primeiro--ministro não se demite nem tem razão para o fazer, mas respondeu-me que a situação tinha mudado e que já não era possível para ele continuar na política. Naquele momento recordei a decepção que tinham sido para ele os resultados das eleições legislativas, lembrei-me da sua nova situação pessoal e tive a sensação de que estava à procura da maneira de dar início a uma nova etapa da vida dele. Ele sabe bem que lhe desejo a melhor sorte nesta segunda navegação.