António Freitas: "São poucos os políticos que percebem o papel dos Serviços de Informações"

Oficial da Força Aérea, foi recrutado primeiro para o Serviços de informações Estratégicas de Defesa, mas acabou por passar para o SIRP, onde dirigiu vários departamentos, como Recursos Humanos, Finanças, Análise Estratégica. Pensa que políticos e opinião pública pouco sabem do trabalho dos Serviços e decidiu dar o seu "contributo para uma cultura de Informações", através de um livro apresentado neste mês: "Inteligência - fundamentos e elementos essenciais. Interesse nacional e Serviços de Inteligência".
Publicado a

Como chegou ao Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e porque decidiu ficar?
Escolhi o Centro Cultural de Belém (CCB) para esta entrevista, porque foi aqui o ponto de partida para a minha vida civil. Era oficial do quadro permanente da Força Aérea e fui desafiado para integrar a direção de Segurança. Quando estava a finalizar a licença sem vencimento, em 2001, comecei a ser "seduzido" pelo SIED.

O que me levou a aceitar foi o projeto. Sempre me movi por projetos toda a minha vida. Depois das Forças Armadas, ia continuar a ter a minha quota parte como servidor público. Pela experiência que tinha em segurança, comecei por ser diretor de Segurança, mas dirigi também os departamentos, de recursos humanos, gestão financeira e, por fim, a análise estratégica.

Deixou os serviços em 2018, á nas Estruturas comuns do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP). O que o leva a escrever este livro agora?
Este livro foi escrito para o cidadão comum, com dois objetivos. Primeiro, relevar a importância da intelligence, como instrumento crucial para o Estado e para a salvaguarda dos interesses nacionais e da segurança nacional.

Segundo, ajudar a fomentar uma cultura de informações. Mas o "ignidor" surgiu quando, em fevereiro de 2022, me deparo com o livro "Spy a Handbook", de Harry Ferguson, ex-oficial do MI6 e instrutor da Spy School inglesa. Este livro , em forma de manual, foi escrito para complementar uma série da BBC, que tinha por intenção revelar ao público o essencial das estratégias e das capacidades necessárias no jogo da espionagem.

Com a ideia a germinar, uma simples pesquisa na Web permitiu constatar que as obras relativas à Inteligência, na sua grande maioria, eram sobre algumas das suas atividades específicas, mas uma delas prendeu a minha atenção, por ter uma abordagem mais abrangente - "The Oxford Handbook of National Security Intelligence", de Lock Johnson, professor de Ciência Política na Universidade da Geórgia nos EUA e editor da revista Intelligence and National Security.

Tendo em mente estas duas "fontes inspiradoras", dei-me conta de que a única obra publicada em Portugal com uma visão alargada da Inteligência era o livro "Intelligence e Segurança Interna" (de 2014), do Superintendente Fiães
Fernandes da PSP, essencialmente centrado na necessidade de Inteligência policial como um dos pilares indispensáveis da segurança interna.

Tirando isto, o que temos são valiosos artigos sobre diferentes temáticas da inteligência, mas peças soltas desligadas de um corpo, de uma visão de conjunto, ou livros sobre os "serviços secretos em Portugal", que se focam em histórias de operações mais ou menos hiperbolizadas, muitas das vezes sob um ângulo negativo, e em "curiosidades internas", para não adjetivar de outra forma.

Ora acho que isto leva os cidadãos a duvidar da atuação dos Serviços de Informações nacionais e a não ter a real noção da importância operacional e estratégica destes, enquanto pilar essencial do Estado.

Foi assim que a ideia de procurar preencher o vazio existente e contribuir para o desenvolvimento de uma cultura de inteligência começou a ganhar forma.

Quanto ao momento, quis, por um lado, assinalar a efeméride do centenário do nascimento do General Pedro Cardoso (7/11), considerado por muitos como o pai das informações em Portugal (foi Secretário-Geral da Comissão Técnica do Serviço de Informações da República desde 1984 até ao seu falecimento em 5 de agosto de 2002). Por outro lado, está em revisão o Conceito Estratégico de Defesa Nacional, bem como está a ser elaborado o primeiro conceito estratégico de segurança interna.

DestaquedestaqueNeste contexto, é fundamental reforçar que os Serviços de Inteligência têm como principal objetivo a aquisição de conhecimento ou de formas de entendimento da realidade, em função dos objetivos estabelecidos pelo Estado, de modo a contribuir para a redução da surpresa e da incerteza, e garantir a liberdade de ação dos decisores políticos, tendo sempre o interesse nacional como motor.

Neste contexto, é fundamental reforçar que os Serviços de Inteligência têm como principal objetivo a aquisição de conhecimento ou de formas de entendimento da realidade, em função dos objetivos estabelecidos pelo Estado, de modo a contribuir para a redução da surpresa e da incerteza, e garantir a liberdade de ação dos decisores
políticos, tendo sempre o interesse nacional como motor.

Resumidamente, penso que para isso e por isso, os serviços têm de sair da periferia e ganhar centralidade. Este é o meu contributo.

Quando temos serviços de informações que nem uma escuta podem fazer, ou sequer acesso a simples dados de comunicações, que resultados podemos esperar?
Somos peculiares em muitas coisas. Há quem diga que os serviços não são mais que um gabinete de estudos. O professor Bacelar Gouveia, de alguma forma, aflorou a questão que coloca na sessão de apresentação do livro, lembrando que temos uma Constituição que dá pouco relevo aos serviços de informações.

Como disse antes, a inteligência tem de ganhar maior centralidade no sistema se segurança nacional, em sentido alargado. A questão que coloca deve ser feita aos políticos.

Citaçãocitacao

É importante frisar que os nossos Serviços têm as valências que têm todos os congéneres, porém com instrumentos jurídicos e TECNINT (meios de inteligência técnica) diferentes, para menos, mas ao nível das aspirações nacionais. O caso da interceção de comunicações é paradigmático.

Aliás, a pergunta de partida será qual a necessidade e utilidade dos serviços em Portugal hoje? Qual é a estratégia? É a pergunta que ninguém quer responder.

Quer responder?
Vivemos hoje num mundo particularmente perigoso, volátil, incerto, ambíguo, com uma complexidade crescente. Estamos dependentes de um mundo digital que aumenta essa complexidade. Não há o local e o lá fora, há o "glocal", com tudo em simultâneo. Cada vez mais os serviços de inteligência devem ser um instrumento que serve ao Estado.

Como refere o professor Heitor Romana no prefácio do meu livro, na conjuntura atual as questões que constituem o cerne da atividade de inteligência de segurança e de inteligência estratégica assumem uma importância nevrálgica.

Os políticos desconfiam dos serviços de informações? Têm medo?
Não acho que seja medo. De uma forma geral, o que há é uma grande falta de cultura das informações. Há exceções, mas de uma forma geral - e não é só em Portugal - são poucos os políticos que percebem realmente o papel da intelligence e o que pode de relevante reportar à ação política.

CitaçãocitacaoDe uma forma geral, o que há é uma grande falta de cultura das informações. Há exceções, mas de uma forma geral - e não é só em Portugal - são poucos os políticos que percebem realmente o papel da intelligence e o que pode de relevante reportar à ação política.

Há um grande desconhecimento ainda sobre esse papel e como a intelligence pode ser fundamental para as decisões políticas. A relação mais direta, depois dos orçamentos, que se estabelece entre os Serviços e os decisores políticos, está nas respostas às suas necessidades concretas, para os ajudar na tomada de decisão em tempo oportuno. Para isso, eles próprios têm de dizer o que querem saber exatamente. É famoso o diálogo entre um dirigente e um Ministro citado por John Wilson, que refiro no meu livro: "Diga-me senhor ministro o que quer saber?", pergunta. " Diga-me o senhor o que preciso de saber", responde governante.


Não há também alguma falha dos dirigentes dos serviços em saber valorizar esse trabalho junto aos governos, até na negociação dos orçamentos? É sabido que as reduções / cativações de orçamento têm sido dramáticas e a sangria de quadros não cessa...
Dado as variadíssimas funções que desempenhei no SIED e depois nas estruturas comuns do SIRP, tenho uma visão alargadíssima disso tudo, mas digo-lhe que não é por incapacidade das cúpulas dirigentes. É, efetivamente, por falta de cultura estratégica, de quem deve tomar decisões, para a importância dos serviços.

Os Serviços em Portugal são democráticos e os únicos recursos financeiros são os do Orçamento do Estado (OE). É preciso ter noção de qual é a fatia do zero virgula, muitos zeros do OE que cabe aos Serviços de Informações, em comparação com o 0,1 de outras coisas que se calhar não têm a mesma importância crucial para o Estado. Já saí há cinco anos, mas posso dizer-lhe que no dia dois de janeiro (porque um era feriado) como diretor financeiro das estruturas comuns já estava apreensivo.

CitaçãocitacaoHá, de facto, gente dos serviços a sair e com isso perde-se muito capital de conhecimento. Os condicionalismos impostos no exercício da atividade e o estatuto oferecido, cada vez mais "depreciado", leva a que saiam muitos quadros ainda novos e de elevado potencial.

Há, de facto, gente dos serviços a sair e com isso perde-se muito capital de conhecimento. Os condicionalismos impostos no exercício da atividade e o estatuto oferecido, cada vez mais "depreciado", leva a que saiam muitos quadros ainda novos e de elevado potencial.

O SIED perdeu nos últimos anos mais de metade das "antenas" que tinha em vários países e dependemos em grande escala das informações de outros serviços...
Temos de ter a noção da nossa escala, da nossa dimensão. Compararmo-nos com a maioria dos grandes serviços é redutor.

A questão - e voltamos ao mesmo - é definir para que queremos os serviços, qual a importância que têm para Portugal hoje e depois definir uma estratégia para os serviços, capacitando-os na justa medida com recursos humanos em número e com as competências necessárias para fazer face aos desafios e ameaças que se nos colocam.

Depois temos de ter meios logísticos e operacionais necessários, à justa medida das nossas aspirações e intenções. Acho que estamos sempre a aspirar a coisas que não temos capacidade.

CitaçãocitacaoHá quem ainda pense que temos um império e pensamos como se ainda estivéssemos nos três continentes. Isso não é possível. Para além da produção de intelligence de base e de inteligência corrente, temos de ter produtos gourmet para que quando alguém precisa de um produto especial o venha pedir a Portugal.

Há quem ainda pense que temos um império e pensamos como se ainda estivéssemos nos três continentes. Isso não é possível. Para além da produção de intelligence de base e de inteligência corrente, temos de ter produtos gourmet para que quando alguém precisa de um produto especial o venha pedir a Portugal.

Por exemplo África?
Por exemplo. Porque temos todo um capital histórico e conhecimento acumulados. O problema é quando perdermos esses produtos gourmet.

CitaçãocitacaoCostumava perguntar aos meus colegas quando me traziam os relatórios se estes tinham "IVA" - Informação de Valor Acrescentado. Podemos ser a última peça que falta para completar um puzzle complexo. É isto que os nossos Serviços devem procurar ter.

Costumava perguntar aos meus colegas quando me traziam os relatórios se estes tinham "IVA" - Informação de Valor Acrescentado. Podemos ser a última peça que falta para completar um puzzle complexo. É isto que os nossos Serviços devem procurar ter. Por outro lado, não pode haver a deriva de produzir por produzir, só para mostrar quantidade.

Mas a dependência excessiva de outros serviços não enviesa a análise para o interesse nacional?
Sempre foi assim, sempre precisámos uns dos outros. Mas a seguir ao 11 de setembro a cooperação tornou-se cada vez mais necessária.

A comunidade de inteligência democrática compreendeu que a solução para problemas de natureza transnacional exige uma resposta do mesmo plano, que pode e deve ser encontrada na cooperação internacional, através da partilha de informações e no estabelecimento de relações de confiança.

Os nossos serviços desenvolvem essa atividade em sintonia com a política interna de segurança e a política externa de Portugal nos mais diversos domínios.

Como a cooperação tem dois sentidos, temos de ter alguma mais-valia que sirva de "moeda de troca", de preferência os "produtos gourmet" que já referi, em relação a áreas geográficas que interessam aos nossos aliados.

Claro que não se ignora que, embora aliados, por vezes temos interesses que não são comuns, e daí a necessidade da "filtragem" que sempre fazemos.

O que procuram os candidatos a espiões em Portugal? O que encontram nos serviços?
As motivações são diversas como em qualquer atividade humana. A imagem que os cidadãos têm sobre os Serviços de Informações oscila entre a idealização, a sedução e a admiração que é transmitida pelo cinema e pela literatura e, por outro lado, pelo que os media escrevem sobre eles.

CitaçãocitacaoAo escrever este livro estava também subjacente desmistificar a sua atividade, afastar ideias e pré-conceitos e, dessa forma, cativar as pessoas para uma realidade concreta. Muitas vezes, e esse é que é o problema, as pessoas vão ao engano. Têm a visão dos filmes e da literatura e depois não é feita uma gestão das expetativas e estas saem goradas.

Ao escrever este livro estava também subjacente desmistificar a sua atividade, afastar ideias e pré-conceitos e, dessa forma, cativar as pessoas para uma realidade concreta. Muitas vezes, e esse é que é o problema, as pessoas vão ao engano. Têm a visão dos filmes e da literatura e depois não é feita uma gestão das expetativas e estas saem goradas.

O que procuramos essencialmente hoje em dia são as competências, mais do que qualificações. A palavra-chave é competências. Costumo dar o exemplo de que não basta ter carta de condução para várias categorias de veículos, se somos pouco hábeis na condução. Posso não ter essa qualificação e ser o melhor condutor.

CitaçãocitacaoO essencial é ter competências que fazem sentido na ação e pelo resultado que geram - o fazer acontecer agora - ou evidenciar capacidades que o permita no futuro. Isso é procurado nos processos de recrutamento. São processos longos, complicados, onde as pessoas vão sendo peneiradas num crivo muito fino.

O essencial é ter competências que fazem sentido na ação e pelo resultado que geram - o fazer acontecer agora - ou evidenciar capacidades que o permita no futuro. Isso é procurado nos processos de recrutamento. São processos longos, complicados, onde as pessoas vão sendo peneiradas num crivo muito fino.

Saber mentir é um requisito que pesa na seleção?
Não, de forma alguma. Só deve ser usada como estratagema operacional, nomeadamente em histórias de cobertura, o que chamo "mentira piedosa".

CitaçãocitacaoA essência de um serviço de informações responsável é falar a verdade aos políticos. Infelizmente, nem sempre isso aconteceu.

A essência de um serviço de informações responsável é falar a verdade aos políticos. Infelizmente, nem sempre isso aconteceu.

É conhecida a história das armas de destruição maciça no Iraque. Mais recentemente os serviços de informações russos não devem ter dito a verdade a Vladimir Putin, mas o que ele queria ouvir sobre a Ucrânia. É uma enorme perversidade, mas uma tentação que os serviços podem ter.

Como se faz o recrutamento? Além de poderem candidatar-se através do site do SIRP, vão também às universidades procurar os que têm as competências que precisam, por exemplo?
Na lei não existe nada que diga qual é a forma de recrutamento. Uma forma é através da chamada candidatura espontânea, que pode ser feita através da página oficial do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), e no meu tempo havia muitas. Em teoria também se pode ir procurar às universidades e a outros "mercados".

Aliás, sempre advoguei isso. É o que se faz em muitos outros serviços, como os espanhóis ou os ingleses. Uma coisa é pesca à linha, que é procurar indivíduos com competências específicas, outra é pesca de arrasto, que são os concursos.

CitaçãocitacaoAtualmente, cada vez mais, se deve procurar fazer pesca à linha, porque as competências necessárias são cada vez mais finas, mais complexas. Uma espécie de head hunting que fazem as empresas. Os serviços deviam ter a nata.

Atualmente, cada vez mais, se deve procurar fazer pesca à linha, porque as competências necessárias são cada vez mais finas, mais complexas. Uma espécie de head hunting que fazem as empresas. Os serviços deviam ter a nata.

Mas não têm capacidade para concorrer com o setor privado...Como cativam então a nova geração?
Essa é a grande questão. Qual é a atratividade? Ou é alguém motivado para ser um servidor público e por um projeto, que não se importe, como foi o meu caso quando saí do CCB, de perder dinheiro, ou não sei. Ou é alguém que tem esse sonho ou não sei.

É gritante o fosso entre o que oferecem as grandes empresas, como em toda a administração pública, aliás. Espero que este meu livro os inspire. Sou um otimista moderado.

Recordo as palavras de Pedro Cardoso, ao citar Allan Dulles: "é necessário restaurar a confiança do público e dos políticos nos serviços de informações nacionais". É lapidar. Foi escrito em 1995.

CitaçãocitacaoTenho um amigo que costuma aconselhar a leitura dos Lusíadas e ver qual é a última palavra: é "inveja". Temos de deixar todas as nossas "invejas" de parte e todos contribuirmos para mudar o pano de fundo.

Tenho um amigo que costuma aconselhar a leitura dos Lusíadas e ver qual é a última palavra: é "inveja". Temos de deixar todas as nossas "invejas" de parte e todos contribuirmos para mudar o pano de fundo.

Foi escrito em 1995 e estamos em 2023...
Continua mais do que atual. O que merece uma reflexão. Como é que cada um pode acrescentar a sua parte a esta declaração, é a questão.

Os serviços têm de fazer a sua parte na aproximação à opinião pública. A comunicação social também pode contribuir, falando também positivamente dos serviços dando a conhecer o seu papel crucial. As academias, no desenvolvimento de uma cultura de informações. E os políticos, através da efetiva valorização da atividade da inteligência como um ativo estratégico.

Diário de Notícias
www.dn.pt