Nasceu no Distrito de Viseu, região de Salazar. Como é que se envolve na política e nas lutas antifascistas? E porquê? Não foi em Viseu. Mas sim em Moçambique, na Beira, nas eleições de Humberto Delgado [1958]. Tinha 15 anos, houve uma grande campanha a favor do general, feita pelos democratas da Beira. A essa campanha veio, por duas vezes, o doutor Almeida Santos, de Lourenço Marques. Na primeira vez, a sala já estava à cunha, foram despedir-se dele ao aeroporto - que fica a 10 quilómetros da cidade -, com um cortejo de automóveis. Exigiram que lá voltasse uma segunda vez, ele foi lá, e o cortejo foi qualquer coisa de enorme. Eu estava no 6.º ano do liceu, fiquei muito impressionado. Comecei a ler as notícias das eleições e a interessar-me, a ler aquilo que os jornais locais podiam dizer sobre o regime, na altura. Foi a partir daí que tudo começou, com amigos, claro. Houve até um episódio curioso. Na Mocidade Portuguesa, os mais velhos iam fazer milícia a um quartel, aos sábados à tarde. Exercícios paramilitares, no fundo. No regresso à cidade, vinham transportados num camião e pediram ao condutor para passar, num sábado às cinco da tarde (que era a hora da população europeia se reunir nos cafés da Beira), e que desse duas voltas à praça. A rapaziada que ia em cima do carro começou a gritar "Humberto Delgado, Humberto Delgado", em tom ritmado. Foi um escândalo. O liceu foi objeto de um processo disciplinar, o reitor foi suspenso, houve um inspetor superior que se deslocou para lá, para falar e interrogar toda a gente. Isto depois das eleições, porque Humberto Delgado ganhou na Beira e noutras cidades do país, mas não foi o suficiente para reverter a fraude eleitoral generalizada que ocorreu então..A certa altura, no livro, fala num namoro com o PCP, uns anos mais à frente. Até com o exemplo do episódio da distribuição do jornal Avante!, com os estudantes de Medicina, que estavam logo ali ao lado da sua faculdade. O que o faz afastar do PCP e ir mais na direção do PS? Não era uma pessoa muito disciplinada. Aquilo parecia-me uma liturgia muito forte, muito pesada e com debate meramente interno. Não significa que não houvesse, mas era um debate muito limitado. Eu comecei a ter muitos amigos que eram aquilo a que hoje se pode chamar sociais-democratas, como Jorge Sampaio, Nuno Brederode, Afonso de Barros. Eram pessoas que nunca tinham sido, nem foram, do PCP, e portanto identificava-me muito mais com eles do que com o PCP. De maneira que, quando fui expulso para Coimbra, nesse ano, já não estava ligado, sequer, ao PCP..Ia tocar nesse ponto. Como se dá a sua ida para Coimbra? Terminei o curso lá. Comecei em Lisboa. No 3.º ano, não pude fazer exames por causa da crise académica. Fui suspenso dias antes. Aliás, já tinha feito duas provas escritas, mas não me deixaram fazer as orais. Mas depois matriculei-me em Coimbra. Rumo para lá em outubro de 1962..E como é que um estudante de Direito em Coimbra passa disso mesmo a ministro? Fui secretário de Estado no Governo de Lourdes Pintassilgo [1979-1980], sendo ministro Alfredo Bruto da Costa. Anos antes, em 1969, passei o ano em França, em Rennes, a fazer o Curso de Administração Hospitalar, na Escola Nacional de Saúde Pública. E, depois, em 1970, regressei, fui para o serviço militar. Entretanto, fui nomeado assistente da recém-criada Escola de Saúde Pública e comecei a interessar-me pelos aspetos da Saúde, começando na Administração Hospitalar e, depois, para todo o sistema, incluindo também a Economia da Saúde..Mais tarde, foi ministro de dois Governos diferentes: António Guterres e José Sócrates. Que memórias guarda desse período? Até pela convivência interna e com os diferentes presidentes da República que atravessaram os Governos. Bem, a convivência dos ministros com os primeiros-ministros só excecionalmente é má. Só acontece nas vésperas da saída, não é? Mas foram sempre ótimas. Eu conto, aliás, que provavelmente até esperava ser convidado para a pasta da Saúde em 1995 (primeiro Governo de Guterres). E não o fui porque houve um movimento de médicos, meus conhecidos, que se opuseram. Conhecia Guterres muito bem, tínhamos sido colegas no secretariado de Jorge Sampaio. Guterres tinha sido líder parlamentar. Era um grande líder, uma pessoa muito inteligente e respeitada. Portanto, a relação com ele, no seu segundo Governo, correu muito bem. Até porque eu entrei já no final. Aquele segundo Governo foi o Governo do empate [115 deputados do PS e outros tantos da Oposição]. Na Assembleia só se desempatava com o voto do "Queijo Limiano", daquele deputado do CDS (Daniel Campelo, que se absteve e viabilizou orçamentos do PS). Isso já era uma situação um bocado difícil. A situação económica tinha sido excelente nos cinco primeiros anos de Guterres, agora complicava-se. Havia esboços de uma crise internacional, portanto a situação não era a melhor. Saí no ano seguinte, em abril. Entretanto, em dezembro, houve as autárquicas, que o PS perdeu e, a partir daí, Guterres demite-se..E o período do Governo Sócrates? Que olhar tem, em retrospetiva? Obviamente, sem levantar muito o véu, por ir fazer parte do segundo volume. Não vou desvendar tudo. No fundo, eu tinha vindo a colaborar há uns largos meses. Sócrates tinha sido eleito secretário-geral há pouco tempo. Apoiei-o, fez-me um convite para ser apoiante. O que me levou a aceitar o convite foi, basicamente, saber que o Jaime Gama e o Ferro Rodrigues estavam a bordo. Comecei a trabalhar no pequeno círculo da preparação do programa, da preparação de documentos técnicos e tal. Foi natural que ele me tivesse convidado para ministro da Saúde. Não esperava ser convidado para a pasta, mas sim para ministro da Administração Pública, porque o meu interesse nesse momento andava nessa área. Tinha presidido ao INA (Instituto Nacional de Administração) e conhecia muito bem a Administração Pública portuguesa. Ainda assim, acabou por ser um período ótimo em termos relacionais. As relações com os Presidentes foram sempre muito boas. No primeiro Governo de Guterres, o presidente era Jorge Sampaio, que era um amigo e até vizinho. Era alguém com quem conversava, mantivemos sempre uma certa formalidade, apesar da amizade de longos anos. Tínhamos um relacionamento cuidado, nesse aspeto. Foi sempre uma relação muito fraterna, o que não impediu que, já depois da demissão de Guterres, eu tivesse um pequeno confronto com a presidência da República, no período até às eleições seguintes. O Presidente enviou para o Tribunal Constitucional uma legislação, em que mudei o sistema de eleição dos diretores clínicos e dos enfermeiros diretores (a eleição deixou de existir e passou a ser por nomeação, pelos conselhos de administração). Isso foi objeto de remessa ao TC porque o Presidente tinha dúvidas que o Governo em meras funções de gestão tivesse poder para alterar a lei. Mas o TC entendeu que sim, e a lei mudou-se..Foi também eleito eurodeputado, em 2009... Sim. Em 2008, no final de janeiro, saí do Governo Sócrates [substituiu-o Ana Jorge]. Ainda voltei ao INA, no fim do ano. Mas, depois fui indicado na lista eleitoral e entendi que devia sair do INA..Que memórias é que tem desse período difícil, também a nível europeu? O segundo volume conta com muito pormenor toda a evolução da crise da troika, sobretudo o drama da Grécia, de Portugal e as dificuldades que existiram no país, e a decisão do nosso Governo de ir para além da troika. Isso é tudo analisado no segundo livro..Já depois desse período, e nestes últimos anos, o SNS tem sido um setor muito fustigado, sobretudo pela pandemia. Como olha para o estado do SNS? O problema fundamental não é financeiro. Não será, também, um problema de gestão. É um problema de autonomia. O SNS e o Ministério da Saúde perderam muita autonomia. Nos anos da troika, o Ministério das Finanças passou, praticamente, a governar a Saúde, o que não aconteceu nos anos anteriores, quando fui ministro. Tivemos sempre imensa liberdade de atuação, dentro do orçamento, mas de forma responsável. Os três anos em que estive no Governo, foram os três em que não houve orçamentos retificativos. E isto foi, provavelmente, uma das causas da minha saída do Governo. Era uma gestão rigorosa, exigente e, naturalmente, não era popular. Mas creio que foi uma boa gestão. Tenho muito orgulho no que conseguimos, nas reformas que conseguimos, como as Unidades de Saúde familiares ou o cheque dentista, por exemplo. Tudo isso foi nesses três anos. Foram decisões extremamente difíceis, muitas delas, mas importantes. Os anos depois do Parlamento Europeu, são anos terríveis, em que toda a Europa está em crise. Tivemos a crise do subprime, e depois tivemos uma crise financeira, os juros a subir espetacularmente e a nossa capacidade de os pagar era cada vez menor, e então fomos alvo da intervenção da troika. Essa intervenção teve a pouca sorte de ser executada por pessoas que estavam tão fascinadas pela ideologia neoliberal, tão fascinados pela ideia de que era preciso punir o povo que tinha levado a dispêndios excessivos. Isso trouxe aqueles aumentos brutais de impostos, as tentativas de cortes. Foi-se muito para além da troika e isso deixou marcas..Depois de Marta Temido, temos Manuel Pizarro à frente da Saúde, já há quase um ano. Enquanto ex-ministro e com a ligação que tem tido ao setor, olhando com um certo distanciamento, que balanço faz? Até pela novidade que é a direção-executiva do SNS, que não existia. Ainda é muito cedo. A direção-executiva ainda não está a funcionar, não tem lei, ainda. Não pode, praticamente, tomar decisões com base jurídica. Aguarda-se a aprovação do seu estatuto, que lhe permita nomear pessoas, por exemplo. Isso tem sido um problema complicado. Quando um ministro faz uma lei para ser executada por um ministro que vem a seguir é tudo muito mais complexo. Provavelmente, a ministra Marta Temido tinha na sua cabeça a noção de como executar aquilo. Mas saiu, praticamente, nos últimos dias em que a lei foi preparada. A própria lei não foi submetida a escrutínio, não foi discutida, não foi conversada com ninguém, foi uma lei feita no silêncio dos gabinetes. Tudo aquilo passou um pouco sem grande debate. Há um ano toda a gente criticava a ministra, porque não havia médicos nas urgências ou nas maternidades. Esse é o problema número um da Saúde, neste momento: a falta de profissionais. Isso é fruto de erros cometidos nos anos 1980/90 até 1995. Houve um ano em que só foram admitidos, nas então quatro escolas médicas, apenas 190 alunos. Quando nós precisávamos que saíssem, por ano, 1500 ou 1700. Houve uma altura em que entraram 6 mil por ano. Toda essa geração, que entrou nessa altura, atingiu a idade da reforma. De repente, vai embora. Por isso é que deixamos de ter clínicos gerais, obstetras, pediatras, enfim, muita gente especializada. Durante os anos 1980, 1990 e 2000, as faculdades de medicina e as escolas médicas uniram-se muito fortemente para obstaculizar o alargamento do acesso. No Governo em que participei com Guterres, lembro-me que, para negociar o alargamento das admissões, foi preciso encontrar financiamento para pagar obras: uma nova faculdade de Medicina, em Coimbra; para investir nas duas escolas médicas do Porto; para fazer o Instituto Câmara Pestana, na Universidade Nova e para fazer obras de vulto em Santa Maria. Foi preciso negociar para convencer as faculdades. Houve, então, um protocolo assinado entre o primeiro-ministro, eu, o senhor ministro da Ciência [Mariano Gago], e com as entidades representativas das faculdades e da Ordem dos Médicos. Isso foi essencial. Havia grande relutância das forças mais corporativas, profissionais, para alargar o número. Claro que há sempre um interesse material. Mas é errado. Não é pelo facto de haver muitos médicos que os bons médicos deixam de ter uma vida próspera. Os bons médicos são bons em qualquer parte do mundo. Isso foi dramático e provocou a crise que agora estamos a viver. E ainda temos mais dois ou três anos em que vamos perder médicos..Como vê, então, a questão da contratação de médicos estrangeiros? Já há 1500 médicos estrangeiros em Portugal. Por que é que se há de estar contra? Há 1500 médicos estrangeiros a exercerem em Portugal. São africanos, sul-americanos, cubanos, ucranianos. É evidente que há algumas barreiras: têm de saber falar a língua e têm de demonstrar conhecimentos através de exame feito numa escola médica, claro. É tão importante, tão necessária a vinda desses médicos que, aqui há uns anos, a Fundação Gulbenkian teve um programa para a reinserção de médicos ucranianos dentro do sistema de Saúde português. Um programa para os ajudar a entrar. Não tem sentido nenhum estarmos a opor-nos à vinda, desde que cumpram, naturalmente, as condições. Durante o meu Governo, mandei o doutor Luís Manuel Cunha Ribeiro, que era presidente da ARS Lisboa, e o professor Eduardo Barroso, ir ao Uruguai recrutar médicos. E fizemos uma coisa como acho que deve ser feita. Propusemos recrutar não sei quantas dezenas de médicos de família. Em compensação, oferecíamos ao Uruguai a possibilidade de virem também alguns cirurgiões altamente treinados para praticar, entre nós, nos serviços de transplantação, medicina de alto nível. Isso foi um programa notável, em que todos ganharam. Reconheço que um programa com Cuba seja sempre controverso. É sabido que, se o programa é testado de Estado a Estado, Cuba só aceita deixar sair médicos se puder ficar com parte do seu salário, e depois têm de regressar à pátria. A experiência também mostra que muitos deles ficam, portanto, não sei se é bom ou mau para o país. Do ponto de vista ético é um pouco complicado. Mas numa relação de troca de conhecimento, por que é que não havemos de o fazer?.Com um passado tão ligado ao associativismo e à participação cívica, como vê as lutas na Saúde? O direito à organização sindical e às reivindicações são direitos constitucionais que nem sequer devem ser discutidos. Também é preciso que haja algum bom senso nas forças sociais. Nem sempre vejo esse bom senso. Durante muito tempo houve uma argumentação de que o Estado português, ou o Ministério da Saúde, se dispunha a aumentar os vencimentos dos médicos em apenas 1,6%. Isto é completamente falso. Pelo contrário. Daquilo que li, o Governo vai criar dois mecanismos que aumentam consideravelmente os rendimentos médicos: um é o da dedicação plena, para que possam subir para aí 25% do ordenado, em troca, claro, da passagem de horário das 35 para as 40 horas semanais. Outro é a possibilidade de até terem uma retribuição por desempenho, como os médicos de família, através dos centros de responsabilidade integrada. Aí, a retribuição até pode ser bem maior a essa compensação. Tudo isso, nos cálculos do Governo, e de acordo com os recursos que tem, creio que para o primeiro ano, representava 40 milhões de euros. É imoral dizer-se que a proposta do Governo é de aumentar só 1,8%. Isso acontece para aqueles que se quiserem manter nas 35 horas. Se os profissionais se queixam de que merecem ser tratados de acordo com o seu contributo, então dar o mesmo a todos os médicos é o contrário disso. Fazer um aumento generalizado é uma coisa que não faz grande sentido..rui.godinho@dn.pt