António Comprido: "Redução do IVA nos combustíveis pode não ser bem-sucedida"
António Comprido não antecipa a necessidade de racionamento de bens energéticos em Portugal por escassez de petróleo ou gás. Mas o secretário-geral da associação das empresas petrolíferas (APETRO) admite que pode haver uma menor utilização por outras razões, "económicas, de preço ou de eficiência energética".
A guerra na Ucrânia e esta crise energética vieram demonstrar que a economia ainda depende muito dos combustíveis fósseis. Neste contexto geopolítico é inevitável que o processo de descarbonização desacelere ou, pelo contrário, vai haver ainda mais investimento?
É uma pergunta que muita gente faz e há respostas até contraditórias. Por um lado, sente-se um pouco a urgência de nos libertarmos dos combustíveis fósseis, principalmente os [países] que não têm esses recursos. Os que têm recursos provavelmente prefeririam que demorasse mais algum tempo. Por outro lado, toda esta turbulência nos mercados financeiros e as dúvidas que se põem também podem colocar algum abrandamento. Por isso, não sei responder se de alguma forma vai ser um incentivo para acelerar a transição energética ou se pelo contrário vai haver um retardamento. Há compromissos a cumprir e julgo que não haverá um retrocesso, poderá haver é alguma alteração do ritmo.
O Conselho Europeu admitiu esta semana que é uma questão de tempo até as sanções contra a Rússia se alargarem às importações de petróleo e gás. Isto é exequível? Qual é a alternativa?
Diria que um embargo total ao petróleo russo vai ser difícil de concretizar a curto prazo principalmente porque há países que estão totalmente dependentes das importações da Rússia e, com certeza, se não tiverem alternativas, vão-se opor. Mas, enfim, os valores e questões políticas ultrapassam muitas vezes a racionalidade económica e não sei exatamente como é que esses países estão dispostos a ceder a um interesse global.
No caso português, o governo tem vindo a anunciar uma série de medidas para mitigar o impacto desta crise energética e anunciou há pouco tempo o aumento do apoio à aquisição de veículos elétricos. É por aqui o caminho? Como é que o setor vê esta aposta?
Os apoios são limitados e o número de veículos que têm direito ao benefício é relativamente pequeno. E há outra coisa que é importante recordar que é o nível de preços de veículos elétricos ainda ser elevado e não estar ao alcance da maioria das pessoas. [...] Achamos que a eletrificação é um caminho e não o único caminho, e não é com certeza a medida com mais impacto para enfrentar o problema dos preços do petróleo ou do gás nesta fase.
Que outro caminho defende?
Estamos muito focados no preço da energia porque de facto tem reflexos em toda a economia, mas estamos a assistir a um aumento em muitas matérias-primas e não é só por causa do custo do transporte. Mesmo antes do custo do transporte já temos nos mercados internacionais matérias-primas a disparar os preços sejam eles para a indústria, para a construção civil... Há um grande nervosismo nos mercados financeiros. [...] Mas na realidade, se pensarmos que as cotações internacionais são algo sobre as quais qualquer Estado individual não consegue intervir, pagamos os produtos petrolíferos ao preço que os mercados internacionais definem. Aí não podemos definir. E depois o que sobra quando olhamos para o preço que pagamos na bomba [de gasolina]? Sobra uma carga fiscal assinalável, e essa sim, é da soberania dos Estados ao nível de ISP [Imposto sobre Produtos Petrolíferos], não ao nível de IVA que como se sabe há um pedido do governo português que eu, enfim, pessoalmente tenho algumas duvidas que seja bem sucedido, porque não sei se a própria Comissão Europeia tem autoridade para conceder essa autorização, porque estão definidos quais são os produtos que podem ser elegíveis para taxas reduzidas de IVA. Não me parece que os produtos petrolíferos estejam nessa categoria, mas é um momento excecional, pode ser que haja um tratamento excecional da Comissão Europeia.
Acha que a única solução é através do ISP?
A única ferramenta disponível é mexer no ISP que, aliás, é o que outros países têm feito. Mas obviamente que isso tem consequências orçamentais, há muita gente a necessitar de apoios e como o dinheiro não é infinito compete ao Estado ver qual é a melhor solução.
Face ao atual cenário, poderemos vir a ter algum racionamento de bens energéticos?
Não creio. Nós [Portugal] do ponto de vista de produção de eletricidade não parece que tenhamos problemas, apesar de termos fechado as centrais a carvão. [...]Às vezes diz-se que eletricidade é igual a energia mas não é bem assim. A eletricidade representa entre 20 a 30% do consumo final de energia. Há muita energia que é a partir do gás diretamente, seja GPL ou gás natural, e aí também não me parece que haja [problemas]. Portugal está bem posicionado pela tal razão de não estar [ligado] por tubos aos produtores, ou seja, pode ir buscar petróleo à América do Norte, América Central, África, Médio Oriente... Portanto, não me parece que haja problemas. Há sempre a questão do preço, mas não a questão da escassez. Também a refinaria nacional consegue-se abastecer de crude e tem produção suficiente para abastecer o mercado nacional quer em gasolina, gasóleo ou em jet fuel para a aviação. E depois temos as refinarias aqui ao lado em Espanha, nós não temos as fronteiras fechadas. Portanto, não adivinho ou não antecipo necessidades de racionamento por escassez de produto. Pode haver por outras razões, económicas, de preço, por razões de eficiência energética que se queira efetivamente levar a uma redução do consumo, mas não me parece que estejamos numa situação de risco de escassez de produtos.
Quando vemos a fórmula utilizada pelo governo para cálculo do ISP e depois vemos os valores semanalmente divulgados dos preços médios de venda não coincidem...
Nem tem de coincidir por várias razões. Primeiro, porque essa fórmula não representa todas as componentes do preço. Por exemplo, não tem em conta a questão dos biocombustíveis. Além disso, posso estar aqui a cometer uma gafe, mas julgo que não, o governo faz [os cálculos] numa base de semana incompleta, não entra com os valores [de cotação do Brent] do último dia [sexta-feira], o que significa que está a fazer uma média de quatro dias que depois pode ser alterada. [...] É preciso não esquecer também que isto é um mercado onde se praticam imensos descontos e campanhas e realmente não é o preço que está anunciado no pórtico que a maioria das pessoas paga. Isso por vezes não é refletido no preço que é publicado. Porque o preço que é publicado é o que está no pórtico baseado num desconto médio do ano anterior. Nem tudo é imediatamente refletido. Além disso, não nos podemos esquecer que isto é um mercado liberalizado, onde cada posto, pelo menos em teoria, pode estabelecer o preço que quiser.
Tem defendido que a descida do preço ao consumidor só poderá ser feita através da fatia da fiscalidade. Mas atualmente qual é a margem de lucro das petrolíferas e como é que compara com a que se verificava há uma ano?
Não sei dizer qual é a margem de lucro porque isso vai depender muito da estrutura de custos de cada companhia [...] O que posso dizer é que com os dados que estão disponíveis na DGEG [Direção-Geral de Energia e Geologia], retiro o preço da cotação e os valores dos impostos e sobra-me uma fatia que são os custos de operação das empresas mais a sua margem de lucro, e não tenho visto essa fatia aumentar. [...] Mas devo dizer que quem está a fazer mais dinheiro, porque é lógico já que a matéria-prima está mais cara, é quem a produz. [...] No caso português temos a Galp, o único refinador em Portugal. Provavelmente a área de produção que tem no Brasil, e noutras áreas, está a fazer mais dinheiro, porque uma coisa é estar a vender o petróleo a 30 dólares ou a a cem. Se bem que nem todo o dinheiro vai para o fornecedor.
As comercializadoras não estão a ganhar mais com este forte aumento?
Não me parece que estejam na atividade de comercialização de produtos petrolíferos. Poderá a refinaria estar a ganhar mais, porque as condições são mais ou menos vantajosas. Mas lembro que a atividade de refinação é em muitos períodos de tempo até deficitária. Não é infrequente as refinarias estarem a trabalhar com margens negativas porque estão entaladas entre dois mercados: o da compra da matéria-prima e o da venda dos produtos refinados, que são independentes. Portanto, posso estar a comprar matéria-prima muito cara e não conseguir vender os meus produtos tão caros como isso. Como pode acontecer ao contrário, haver uma escassez de produtos e eu estar a ter matéria-prima a um preço e a vender os meus produtos acima.
O ex-ministro da Economia mostrou-se crente, quando anunciou as medidas que estão em vigor, que não haveria aproveitamento por parte das gasolineiras. Por outro lado, também disse que o instrumento preferencial para a intervenção do governo era o IVA, precisamente porque as gasolineiras tendem a absorver as descidas do ISP. Matos Fernandes insinuou que haveria subidas duvidosas no preço. Estamos a assistir a uma passagem desta desconfiança do plano do consumidor para o plano político?
Não gosto muito de comentar as afirmações dos políticos, mas devo dizer que são muitas vezes influenciadas por aquilo que acham que as pessoas vão gostar de ouvir. Tenho que dar sempre um desconto às afirmações dos políticos. O engenheiro Matos Fernandes fez várias vezes afirmações completamente desprovidas de propósito, de oportunidade e até injustas, levantando suspeitas relativamente a um setor, que não tem razão nenhuma para levantar suspeitas. [...] Relativamente a essa história que é melhor o IVA do que o ISP, francamente vi sempre ao longo da minha vida - e já estou há muitos anos nisto - as alterações de ISP normalmente decretadas à meia-noite de um dia de sexta-feira para serem refletidas nos preços da segunda-feira seguinte. Diria que há algum populismo nessas afirmações, só isso para mim é que justifica que isso seja feito. Evidentemente que o IVA tem um tipo de controlo diferente porque as empresas não podem ficar com o dinheiro, têm de o entregar ao Estado. E sob esse ponto de vista sim, é um sistema mais controlado. Mas só sob o ponto de vista administrativo do tratamento do IVA em relação ao tratamento do ISP. As subidas e descidas do ISP são sempre refletidas de imediato pela generalidade dos operadores, pelo que não entendo o receio manifestado.
Como avalia as medidas que os Estados-membros da UE estão a querer implementar para mitigar o aumento dos preços? São suficientes? E a medida para impor tetos ao preço do gás natural para a produção de eletricidade, que impacto poderá ter?
Não sou especialista, mas já falei com alguns e isso não é tão simples como isso. Quando se diz que o produtor de eletricidade que usa gás natural para produzir eletricidade não pode usar o preço acima de um determinado valor, está a criar-se aqui um défice tarifário. E esse défice terá de ser pago por alguém e isso ainda não foi explicado e, portanto, tenho uma ideia do que irá acontecer.
Quando diz que tem uma ideia, quem é que vai pagar esse défice?
Todos nós, porque o défice tarifário que ao longo dos anos se constitui na eletricidade depois era repercutido por todos os consumidores. E ainda existe, ainda não foi completamente esvaziado. Costumo dizer uma coisa que não sei se é muito politicamente correta, mas quem acaba por pagar sempre é o cidadão. Na figura de contribuinte ou na figura de consumidor. Porque os Estados não têm uma mina de ouro ou uma fábrica de dinheiro para acorrerem a essas situações. Usam as receitas, e as receitas são os impostos que nós pagamos. E, mais tarde ou mais cedo, os contribuintes através dos seus impostos, ou os consumidores - e normalmente temos a figura dupla de consumidor e de contribuinte - vão ter que ou pagar. Ou pelo preço das coisas ou através da subsidiação, utilizando o dinheiro dos nossos impostos.