Antigo seminário transforma-se em centro de recuperação para feridos de guerra
"Eu sou ucraniano, estou cá em Portugal há 20 anos e sinto-me obrigado a estar ao lado do meu país e do meu povo. Julgo que sou mais útil assim, aqui." Roman Kurtysh , de 37 anos, é o mentor da Ukrainian Refugees - UAPT, uma organização sem fins lucrativos que está a recuperar um antigo seminário, perto de Ourém, para o transformar no primeiro centro de apoio a feridos de guerra. Se tudo correr bem, em abril já estará a funcionar, numa parceria com a CUF Hospitais.
Logo que rebentou a guerra, a 24 de fevereiro, a comunidade ucraniana em Portugal começou a mobilizar-se para ajudar quem começava a ficar desalojado. A UAPT nasceu quatro dias depois. Roman vive em Portugal há quase 20 anos. Chegou a 19 de setembro de 2003 para um intercâmbio universitário. "A ideia era ficar para ver o Euro 2004. E afinal fiquei muito mais tempo...", conta ao DN o ucraniano que desde há um ano preside à associação.
A seu lado, o luso-brasileiro Ângelo Neto explica a rapidez com que se desenhou este projeto: a 26 de fevereiro fizeram a primeira reunião nas instalações de uma das empresas de Roman. "Apareceram umas 20 pessoas. Falámos e começámos a trabalhar. Dois dias depois estava formalizada." Esta é a história da associação mas também do seu plano de ação. A ideia de criar um centro para refugiados de guerra em Ourém aconteceu pouco antes do Natal, quando a atual proprietária do edifício o disponibilizou, de viva voz. Juntaram-se no apoio outros parceiros, como a Galp e o Leroy Merlin - que assegurará as obras.
"Em 2022 realizámos seis voos humanitários, permitindo trazer 1615 refugiados para Portugal (dos quais 462 crianças)", conta o presidente da UAPT. O último aconteceu no dia 22 de dezembro. "Chegou ao pé de nós uma senhora - que era proprietária deste antigo seminário - a disponibilizar-se para doar geradores. Depois perguntou o que precisávamos mais. Falámos de um espaço para instalar o centro de tratamento para feridos de guerra. A partir daí foi tudo muito rápido", recorda Roman.
"Será um centro de recuperação e fisioterapia. Assinámos um protocolo com um hospital privado em Kiev e com a CUF. Os feridos vão chegar a Portugal com todos os exames feitos lá, enviamos para a CUF, que analisa e escolhe as pessoas que aceita tratar com vários tipos de traumas", revela o presidente desta organização. O centro - cujas obras começam entretanto - terá capacidade para alojar 150 pessoas, contando que cada ferido poderá vir acompanhado de um familiar.
Depois de um dia em que cerca de 100 voluntários limparam o edifício, há duas semanas, as obras podem começar a qualquer altura. O investimento ronda o meio milhão de euros. Segundo a associação, "o objetivo é ter as obras prontas no final de março e receber os primeiros feridos já durante o mês de abril".
Vão trabalhar no local 25 pessoas, num centro cujo nome é revelador: Fénix. "No fundo, o que queremos é dar outra vida às pessoas que estiveram a defender a vida dos outros", afirma Roman Kurtysh, que já voltou à Ucrânia em plena guerra, em julho do ano passado. Os pais estão cá, mas lá estão muitos familiares, incluindo os sogros. "Estão lá e não querem sair", admite.
Ao longo deste último ano a UAPT assegurou também o transporte de mais de 100 toneladas de medicamentos enviados de Portugal para a Ucrânia. Juntam-se mais de mil toneladas de bens enviados por via terrestre, em cerca de 200 camiões TIR e nove comboios. "Damos suporte a mais de oito mil refugiados que chegaram a Portugal por iniciativa individual, sem suporte de qualquer tipo. Fizemos montagem, organização e acolhimento dos refugiados em cinco centros (Lisboa, Mafra, Azambuja, Leiria) e agora junta-se este, para os feridos de guerra", explica Ângelo Neto. "Já atendemos mais de 10 mil refugiados e podemos dizer que mais de três mil têm já emprego em Portugal", acrescenta. Além disso, dão ainda "apoio concreto, neste momento, a cerca de 20 crianças que têm ambos os pais na Ucrânia (médicos, soldados, entre outros)".
O edifício do antigo seminário dominicano ganhou expressão num documentário do realizador Filipe Araújo: O Casarão. O pai, Horácio Araújo, fora um dos seminaristas que ali viveu. No momento em que se dispôs a fazer uma biografia dele, deparou-se com um conjunto de memórias que decidiu imortalizar no cinema. "Isso aconteceu a partir do momento em que travei conhecimento com o caseiro, que ainda lá mora, nascido na casa em frente", contou Filipe Araújo numa entrevista à Agência Ecclesia, há cerca de um ano. É ele, António Oliveira, que continua a ser o "guardião" daquele espaço, e que encontramos logo à chegada à Aldeia Nova. É memória viva daquela que foi a casa de figuras conhecidas como João de Melo (autor de Gente Feliz com Lágrimas) ou Frei Bento Domingues.
António nunca foi seminarista, mas era "da casa". E por isso assistia às aulas e participava de toda a vida do seminário, fundado em 1940. "Nos anos 60 isto tinha uma vida impressionante, não apenas pelo seminário em si, mas porque os sete hectares de terreno eram cultivados, tornando-o autossuficiente. Foi assim até 1973. Em 1975 passou a ser Casa da Criança" - o equivalente ao que são hoje os centros de acolhimento. "Esteve assim uns 12 anos, a cargo da Segurança Social", recorda António, que agora se alegra com a nova vida que o espaço terá.
Para lá do portão, a quinta que alberga o antigo seminário continua, bem como os projetos. A UAPT tenciona construir ali 15 bungalows, uma piscina e, à volta, uma horta comunitária. "A ideia é que fique um centro autossustentável", sublinha Ângelo Neto. "O nosso objetivo é que os feridos de guerra se dediquem à natureza como forma de recuperação, com uma horta biológica, pomar, animais."
"Quando a guerra acabar e tratarmos todos os que conseguirmos, ficará para uso da comunidade local", revela o presidente da direção. E nesse rol incluem-se "vítimas de violência doméstica, crianças em estado vulnerável, entre outras".
A associação acredita que uma forma de financiamento para sustentar o centro será utilizar os bungalows para turismo rural. E por isso entende que é possível fazer ali "um turismo solidário". "Queremos mesmo criar esse conceito", adianta Ângelo Neto, que trabalha em comunicação e marketing e por isso é ele que tem dominado a divulgação da iniciativa.
Roman confessa que se considera "muito mais útil aqui, a ajudar desta forma, do que se estivesse a combater". Nunca teve uma arma nas mãos nem vontade de a ter.
dnot@dn.pt