Ângelo Girão: "Penáltis? Rezo para que não acertem em zonas desprotegidas"

Começou a praticar hóquei em patins a nível federado nos escalões de formação do Vigorosa. Demorou pouco tempo até chegar ao FC Porto, onde esteve durante dez temporadas, e pelo Gulpilhares, Académica de Espinho e Valongo (onde foi campeão) antes de se mudar para o Sporting em 2015-16. Muitos dizem que é o melhor guarda-redes do mundo. Com um assinalável espírito de sacrifício, Ângelo Girão foi um dos obreiros do título europeu da seleção em 2016 e do Sporting em 2019. Foi o herói da final do mundial ganho por Portugal ao defender quatro grandes penalidades.
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Foi campeão Mundial e campeão europeu de clube pelo Sporting no espaço de um mês...

Quando ganhámos a Liga dos Campeões disse no balneário que tinha sido o título que mais prazer tinha dado ganhar pela envolvência, pela rivalidade - foi contra o Benfica e o FC Porto - por tudo o que os adeptos deram na bancada, foi um título excecional e quando achava que nada o ia bater em termos de magnitude e de carinho, eis que conseguimos conquistar o Mundial em Espanha. Nenhum de nós estava à espera da repercussão que teve e foi ótimo, a modalidade precisava disso e nós a nível pessoal também.

Esta geração conseguiu o que mais ninguém tinha conseguido desde 2003. Vocês sentiam que isto era possível ou só foram acreditando com o decorrer da prova.

Já vínhamos a acreditar neste título há algum tempo. Não éramos campeões da Europa desde 1998 e esta geração conseguiu ser em 2016. Estivemos muito perto de ser campeões do mundo em 2017, perdemos nos penáltis para a Espanha e perdemos o campeonato da Europa do ano passado de forma categórica. É uma geração que tem estado sempre nas decisões, perto de ganhar e o Mundial fazia parte dos nossos planos. Sabíamos que mais tarde ou mais cedo o íamos conseguir. Se calhar não o conquistamos de forma brilhante, mas ganhámos na humildade, no querer, na raça, na disponibilidade física e defensiva. O que importa é que o título é nosso.

Diz que se calhar não o conquistaram de forma brilhante, mas a verdade é que ultrapassaram todos os grandes rivais - Itália, Espanha e Argentina...

Jogamos contra as melhores seleções do mundo. Não podíamos ter ganho a mais ninguém para sermos campeões do Mundo, somos realmente os verdadeiros campeões do Mundo. A taça é nossa, está cá e já não interessa a quem ganhámos. É verdade que eu e outros jogadores da seleção pensámos em desistir da seleção se perdesse-mos com a Itália, nos quartos-de-final, não sabíamos se voltávamos a representar a seleção... não queríamos estar ligados a outra fase negra da seleção.

O jogo com a Argentina, a taça, os parabéns, a receção em Belém...Já desceu à terra ou ainda anda nas nuvens?

Eu olho com muito carinho para aquilo que se passou, confesso que ainda estou um pouco nas nuvens. É um título, que tal como o europeu pelo Sporting não vou esquecer tão cedo. Espero repeti-los em breve, mas não me vou esquecer tão cedo por tudo o que envolveu esses títulos e porque fomos recebidos pelo presidente da República e conseguimos algo que não está ao alcance de qualquer um. Ser condecorado é bom, mas nãos e compara a conquistar um título pelo nosso País, que é o mais importante que um atleta pode atingir.

Quantas vezes já reviu a final?

Umas quatro ou cinco e o resultado não muda (risos). Isso porque eu gosto de ver hóquei, ver o que fiz bem e mal, temos sempre alguma coisa para aprender

Ainda houve alguma coisa que fez mal?

Há sempre. Aprendemos muito mais nas derrotas do que nas vitórias. As vitórias por vezes são traiçoeiras, porque fazem-nos achar que somos invencíveis ou os maiores da nossa rua. Por isso digo que é preciso fechar a porta depois de cada triunfo, já foi, venha o próximo. Traz-me muita felicidade, mas há mais títulos para conquistar.

Os europeus e mundiais são sempre patriotas, no sentido em que os portugueses seguem a seleção...

O hóquei em patins está no ADN dos portugueses, gostam de ir ao pavilhão, acompanhar pela televisão e os media dão-nos cada vez mais atenção e isso é bom. A seguir ao futebol deve ser o desporto mais querido de Portugal.

Travou quatro bola paradas na final... Qual o segredo?

Não há segredo a não ser o treino e tem muito de sorte...

Apesar disso segundo o seu treinador no Sporting, Paulo Freitas, o Girão "ainda tem um longo caminho a percorrer nos penáltis, ele não gosta muito de trabalhar o penálti, sabe que a bola aleija"... É assim?

É verdade, mas há uma explicação lógica. Nós no Sporting temos grandes marcadores de penáltis... As pessoas pensam que nós estamos todos protegidos, mas não estamos e há zonas do corpo onde a bola aleija muito. É só por causa disso. Num jogo estou lá para defender e ponto final, nos treinos não tem piada (risos). Adoro defender livres diretos, penáltis é melhor evitá-los. É uma parte importante do treino, mas rezo para que não em acertem em zonas desprotegidas

A bola aleija?

Muito.

Estamos a falar de uma pancada a que velocidade?

Fizeram um estudo em que concluíram que pode ir até 160 Km por hora, não é nada agradável.

Depois de ter defendido quatro grande penalidades, na final, o João Rodrigues disse façam uma estátua ao Girão. Onde vai ser?

(risos). Foi uma brincadeira do João Rodrigues que soube bem ouvir porque veio de um jogador que eu admiro, o capitão da seleção. Conheço-o desde os 14 anos e acima de tudo porque ele estava agradecido por algo que eu fiz por nós. Senti que não lhes falhei a eles como equipa nem aos portugueses. Assim como eu tenho de lhes estar agradecido a eles pela forma como deram o corpo às bolas na final. Ouço dizer que Portugal era muito fraco e ganhou pelo guarda-redes, é mentira! Portugal tem das melhores seleções do Mundo, dez jogadores de qualidade mundial.

O que o fez ser guarda-redes?

Eu patinava bem, mas como queria ser igual ao meu irmão quis logo ir à baliza. O meu pai trabalhava até tarde e a minha mãe não tinha onde me deixar então ia para os treinos com o meu irmão que jogava no Estrela e Vigorosa Sport e habituei-me a querer ser igual a ele. Passava grande parte da minha semana a seguir à escola a ver os treinos do meu irmão. As nossas brincadeiras iam parar sempre ao hóquei em patins. O meu irmão fazia de jogador e eu ia para debaixo de uma secretária com as luvas dele para tentar defender os remates. Também jogava futebol na garagem e na rua, e joguei ténis e pratiquei natação. Nunca fui daqueles miúdos de ficar em casa a jogar playstation, sempre adorei desporto e o hóquei sempre foi a paixão por causa do meu irmão. (Nunca fiz um jogo à frente e gostava de fazer, sou alto jogador)

E quando é que alguém se percebe que havia talento para mais?

Foi num jogo no Vigorosa. Viram-me a jogar e passei logo para o FC Porto fiquei lá uns dez/11 anos. Nos seniores é que se vê quem tem unhas para tocar guitarra e eu tive a sorte de ter oportunidades e pessoas certas do meu lado. Uma carreira constrói-se com trabalho e dedicação, mas também com alguma sorte.

Recentemente mudou-se para o Sporting, que regressou ao Hóquei.

Eu jogava no Valongo, tínhamos acabado de ser campeões, um título impensável para muitos e tinha um convite do FC Porto, mas era para continuar emprestado ao Valongo e eu sabia que o Sporting ia a ser mais fraca do que a que tinha tido no Valongo. Era uma aposta de risco, mas foi um risco calculado porque o que foi dito pelo presidente Bruno de Carvalho é que iam continuar a apostar até sermos campeões e não me falharam com a palavra. Todos os anos o clube investe e dá condições para ser profissional de hóquei em patins e hoje estou muito feliz por ter sido o primeiro a assinar contrato profissional no regresso do hóquei ao Sporting. Olhando para trás fiz uma escolha com muito risco, mas acertada.

O Sporting tinha grande tradição no hóquei...

Os trinta e poucos anos em que esteve fora...perde-se muita coisa. Sem pavilhão... O primeiro ano foi difícil. Vinha de uma realidade semi-profissional que era o Valongo e quando chego Sporting a primeira palestra do presidente [Bruno de Carvalho] foi que era para ser campeão. E nós pensamos, alguém que lhe diga que não dá, nem por um milagre...

Mas demorou pouco até o milagre acontecer...

Sim. Ganhar tudo o que ganhámos nestes anos desde o regresso nem o adepto mais otimista se atrevia a sonhar. Nem eu. Mas de lá para cá foi uma Taça CERS, uma Supertaça, uma Liga dos Campeões, um campeonato nacional, um campeonato da Europa e um campeonato do Mundo de seleções.

A modalidade precisava do Sporting?

Claro que sim. A rivalidade é importante e faz crescer a modalidade. Uns puxam pelos outros. O Sporting investiu, a Oliveirense investiu, o FC Porto e o Benfica também investiram. Tirando a equipa do Barcelona, os melhores jogadores do Mundo jogam em Portugal e os que não estão querem vir para cá, mas não há colocação para todos, somos dez/12 jogadores em cada equipa. Isso é bom, faz com que a modalidade cresça e nos nos possamos desenvolver enquanto jogadores e espero que os clube e a federação saibam aproveitar isto a a seu favor. O hóquei passou por uma crise em que estagnou, mas de há quatro anos para cá voltou em força. Os portugueses têm culpa (boa) pelo investimento que fizeram, os melhores do mundo estão cá a jogar se tirarmos os jogadores do Barcelona e passamos a ter um campeonato apetecível, bom de ver e as rivalidades voltam a nascer.

Mudar o quê e de que forma?

Estando disponíveis para transformar a modalidade num espetáculo tipo a NBA, em que os adeptos sintam que os cinco euros que pagam valham a pena. Não é que o jogo não valha por si, ma sé preciso mais. Havia um pouco a ideia de que o Hóquei não precisava de ninguém, mas precisa. Precisa da Comunicação social, de chamar gente ao pavilhão... No Sporting temos tido sempre grandes casas e mesmo quando jogamos fora temos os pavilhões cheios, mas pode-se sempre fazer mais.

Estou a ver que é uma pessoa preocupada com o futuro da modalidade?

Preocupo-me porque adora hóquei e tenho um carinho muito grande pela modalidade. Sou um felizardo por fazer aquilo que mais gosto de fazer na vida. Gosto do que estou a viver e não quero que acabe. Eu cresci a ver um hóquei que era FC Porto - Benfica, Benfica - FC Porto e hoje em dia não, há esta incerteza sobre quem será campeão, saber se a bola bate no poste e entra ou se bate no poste e falha. Não há ninguém que consiga garantir que ganha.

Qual é o papel dos jogadores?

Dar espetáculo e ajudar a quebrar algumas barreiras mentais para mudar. O que for preciso para que a modalidade cresça

Onde andava este Ângelo que muitos dizem ser agora o melhor guarda-redes do Mundo...

Não sei, mas o segredo é a maturidade. Vou crescendo, fiz muitas coisas que não devia, sou impulsivo, continuo a errar, mas acho que cresci ao longo do tempo. O ano passado por exemplo senti-me injustiçado no jogo da Luz, com uma decisão mal tomada e tive uma má reação, levei dois cartões azuis. Não o devia ter feito, mas estes episódios são cada vez menos. Costuma-se dizer que ao guarda-redes dos 30 para a frente é que costumam ter a melhor parte da carreira, eu faço agora 30 e não me saí mal até agora. Há guarda-redes como o Edo Bosch, que foi dos melhores de sempre, que jogou até aos 41, por isso ainda tenho muito pela frente.

Disse há poucos que as vitórias são traiçoeiras, e as derrotas, como lida com elas?

Mal. Lido muito mal com a derrota, as pessoas mais próximas como a minha mulher sofrem um bocado com isso. Já melhorei muito nesse aspeto, antes depois de uma derrota fechava-me me casa, não queria sair e ir a lago algum, agora já vou saindo e se tiver de ir a um restaurante vou. Depois as as derrotas obrigam-me a ver os jogos, uma duas, três vezes, se calhar trabalho mais durante essa semana. Nós temos de fazer sempre uma introspeção e ver que podemos melhorar, nem quando ganhamos está tudo bem e se revirmos os jogos vamos sempre ver algo que podemos melhorar. Tento aprender e não relaxar com as vitórias. E se perder sei que vou ter 15 espadas apontadas ao pescoço.

Quem é o Ângelo por detrás da máscara de guarda-redes?

Uma pessoa normalíssima que gosta de estar com os amigos. Aqui no Sporting temos por hábito juntar-nos e fazer coisas juntos. Um fim de semana fomos todos para a praia, depois fomos todos jantar. Gosto acima de tudo de conviver. Gosto de pessoas e de passar tempo de qualidade com as pessoas que me dizem algo. Uma pessoa simples, que ainda estuda, estou a acabar a faculdade de Desporto, faltam seis cadeiras e já estou a pensar numa pós graduação

Esse curso já tem alguma coisa a ver com o após carreira?

Nós jogadores temos de ter noção de que não somos como os jogadores de futebol, temos de pensar num pós carreira. Eu só tenho pensado nisso em termos de ordenado, ponho para o lado muito do que o que recebo, mas o curso é mais para continuar ligado ao desporto depois disso.

O jogador do hóquei é bem pago?

Neste momento os jogadores das quatro equipas de topo (Sporting, FC Porto, Benfica e Oliveirense) são bem pagas. Mas não somos bem pagos ao ponto de acabar a carreira e viver do que ganhámos. Somos bem pagos, mas temos de poupar muito para saber quando acabarmos podermos continuar a trabalhar sabendo que temos uma almofada de lado. Não dá para fazer vida de jogador de futebol

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