Ana, a campeã que ganhou a alcunha de "sniper"
Portugal teve 16 campeões do Mundo em 2018, mas só um deles, Fernando Pimenta, na canoagem, tem mediatismo e reconhecimento público à dimensão do título conquistado. Os outros 15 são ilustres desconhecidos que praticam modalidades individuais com pouca ou nenhuma visibilidade. A maior parte suporta as despesas de participação do próprio bolso. O DN falou com três destes campeões do Mundo que vivem no anonimato e publica as suas histórias nos próximos dias. Esta segunda-feira conheça melhor Ana Pereira, 44 anos, que foi campeã do Mundo de Field Target (tiro).
Ana Pereira é natural de Lisboa, tem 44 anos e quatro títulos mundiais de Field Target, o último conquistado no ano passado em Lazy, na Polónia. Descodificando, ela é campeã do Mundo de tiro com carabina de ar comprimido ao ar livre, uma modalidade que nasceu em Inglaterra há 40 anos."Pratica-se ao ar livre num campo com 50 alvos divididos por 25 pistas, dois alvos e três minutos por pista. Não sabemos a distância dos alvos, estão colocados entre os 9 e os 50 metros, temos de calcular a distância, ler o vento, configurar a carabina e acertar no alvo. Há três posições de tiro, sentada, de joelhos e em pé. São três dias de prova com 150 alvos e provas de 5/6 horas com uma carabina de mais de 6 quilos. É preciso ter resistência física, concentração e animo", explicou a atleta ao DN, ela que é uma das poucas mulheres a competir em Portugal e compete na classe geral.
A primeira relação com as armas aconteceu há 15 anos, por influência do marido. Ele queria "experimentar o que era isso das carabinas de ar comprimido e encontrou na Internet um grupo de pessoas na grande Lisboa que se juntavam ao fim de semana e davam uns tiros". Ela acabou por ir também: "Fui para experimentar e gostei. Sem qualquer pressão fui crescendo para a competição." Ana ganhou "verdadeira paixão pela modalidade", que rapidamente "acabou por ser um hobby divertido e sério ao mesmo tempo". Esse se calhar "é o segredo" para o sucesso que tem tido: "Para mim a competição não é só as provas, uma semana é para competir, outra é para fazer turismo e férias."
Aos poucos, Ana e o grupo de amigos perceberam que se quisessem evoluir tinham de ir ver o que se passava em outros países e começaram a ir a provas a Espanha. Em Portugal as competições tinham 20/30 participantes e no País Basco em 2010 encontrou lá umas 120 pessoas. Nada que a tenha assustado. Pelo contrário! Em 2012 decidiu ir ao Campeonato do Mundo na Noruega. Nessa altura já tinha adquirido "uma carabina de competição a sério". Começou então a preparar um grupo para ir de férias: "Fomos 12 pessoas e conseguimos ter um atirador no top 10 e eu ganhei a classe das senhoras (risos)." Assim, logo à primeira, Ana arrecadou o título mundial. "Foi uma grande, grande surpresa", mas ficou "muito feliz". Tanto que a partir daí começou a participar em todos os campeonatos do Mundo e da Europa. Hoje tem quatro títulos mundiais (2012, 2016, 2017, 2018) e cinco europeus (2014, 2015, 2016, 2017, 2018).
A modalidade é amadora e os campeonatos além de medalhas e felicidade dão para ganhar material. Ana já ganhou uma mira e várias carabinas: "Se quisermos vender o material ele ainda rende algum dinheiro."
O que mudou na sua vida depois de ser campeã do mundo? "Mudou a minha forma de estar e a forma como olhava para as competições. Acho que me fez evoluir como pessoa e ajudou-me tanto na vida pessoal como profissional", respondeu Ana. Além disso deu-lhe o reconhecimento institucional que lhe faltava. A partir de 2013 foi-lhe atribuído o estatuto de atleta de alta competição, por parte da Federação Portuguesa de Tiro, em conjunto com o IPDJ. Este estatuto é renovado todos os anos e desde então que o mantém. A Federação apoia financeiramente as idas aos campeonatos da Europa e do Mundo todos os anos, "um contributo muito importante, que cobre em grande parte os custos das participações".
Sim, porque para se competir a sério, o investimento é considerável. A carabina e todos os seus acessórios, a mira, o casaco, as luvas, é tudo personalizado. Um equipamento topo de gama em média custa 10 mil euros. E como não é possível ser profissional do tiro em Portugal, Ana precisa de trabalhar. É assistente de marketing na indústria farmacêutica. Os colegas de trabalho "sempre acharam imensa piada" ao que faz. "Acham curioso como é que eu gosto tanto de armas e dedico tanto tempo e atenção a esta causa", revelou ao DN, confessando que " na brincadeira" quando se querem meter com ela chamam-lhe "sniper".
Ana garante que não faz mal a ninguém. "Gosto logo de explicar que é tiro com ar comprimido e não arma de fogo. Não deixam de ser armas nem deixam de ser perigosas, mas não é a mesma coisa que uma arma de fogo", explicou, garantindo que o uso da arma em si não a melindra enquanto mulher. Nem tão pouco se sente discriminada pelos colegas homens: "Aliás, até somos muito acarinhadas e respeitam-nos muitos. Eles conseguem perceber se somos tão boas ou melhor do que eles. É uma modalidade igualitária, a pontuação é igual para homens e mulheres, não há diferença entre as classes como em outras modalidades. Se um homem usa uma carabina que pesa 6,5 quilos a minha também pesa igual, eu tento sempre reduzir umas gramas nos adereços."
Treina aos sábados, domingos, feriados e férias no Centro de Alto rendimento do Jamor. Faz ginásio, corrida e musculação, afinal precisa de ter força para segurar na arma e o ritmo cardíaco controlado. O tiro dá-lhe "saúde", garante a assistente de marketing, que aos 44 anos ainda não pensa no adeus."A modalidade não tem limite de idade, por isso..."