Ana Quintans, uma jovem que Mozart guia do negrume para a luz

"Idomeneo, Re di Creta" estreia-se hoje, 10 de março (20.00) no São Carlos, com o soprano Ana Quintans como Ilia, o seu primeiro papel de relevo nesse teatro. A direção musical é de Christian Curnyn, maestro inglês especialista em ópera do século XVIII, e a encenação de um australiano conhecido por espetáculos de circo. Récitas dia sim dia não, até dia 18.
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Enfim chegou para Ana Quintans, a mais internacional cantora lírica portuguesa, a ocasião de cantar um papel principal no único teatro de ópera do seu país: "É especial, claro, e espero que se repita, mas ao mesmo tempo assusta um pouco cantar na cidade onde vivemos. Apesar de passar muito tempo no estrangeiro, na verdade eu nunca deixei de viver em Lisboa."

Com Ana no papel de Ilia, o Idomeneo tem hoje a primeira de cinco récitas. E é Ilia a personagem mais densa e interessante desta opera seria que Mozart escreveu para a corte de Munique e que dirigiu na estreia, dois dias após completar 25 anos: "Nota-se que Mozart queria muito impressionar com esta ópera. Por um lado, tem uma escrita orquestral riquíssima e grandiosa; por outro, é porventura a ópera de Mozart com melhores números corais. E para os solistas, ele experimenta muito com os ensembles."

O subtítulo da ópera é Ilia e Idamante, recentrando assim a história no jovem par amoroso - ele, um príncipe cretense, ela uma princesa troiana levada para Creta na sequência da lendária guerra. "Quando a ópera começa, eles já estão apaixonados, mas Ilia, ainda cativa, culpabiliza-se por amar um príncipe de uma nação inimiga; e ela ainda não sabe que Idamante a ama." Um início de ópera, de resto muito exigente para a cantora: "Ilia tem um recitativo acompanhado extremamente dramático e de emoções extremadas, no qual se misturam o passado de morte e destruição em Troia [ela é filha de Príamo], o presente, seu e dos seus compatriotas, cativos em Creta, e a dilaceração que lhe causa o sentimento que, não obstante, sente por Idamante, a quem deveria, na verdade, odiar." Um cocktail que leva Ana a declarar Ilia "atormentada e à beira do colapso nervoso", mas ainda assim avisa: "Nunca se pode perder o controlo da linha vocal, porque afinal estamos a cantar Mozart." E a música que Mozart lhe serve aí, diz, "ilustra perfeitamente os seus sucessivos estados de alma, que vão da exaltação à ternura e ao tormento e vice-versa".

A sua grande intervenção seguinte ocorre no segundo ato, quando tem audiência com Idomeneo, entretanto regressado: "Nesse momento", conta Ana, "ela já aceitou o facto de ficar ali e ali construir nova vida. Ainda não é capaz de verbalizar o seu amor por Idamante, mas está no caminho. Há por isso um tom de apaziguamento."

Sobre esse encontro com o rei (e pai daquele que ama), diz: "Nesse momento, ela e os troianos já foram libertados por Idamante, que com isso quis demonstrar a Ilia a sinceridade dos seus sentimentos. Agora, diante do monarca, ela quer assegurar a sua integridade física e a dos seus conterrâneos, mas ao mesmo tempo pretende salvaguardar a possibilidade de uma união com Idamante." Da parte do rei, considera, "há um tratamento respeitoso, de quem sabe estar diante de uma princesa, e o diálogo evolui numa linguagem rebuscada e protocolar". Mas, lembra--nos, "nesse momento, o rei já está tomado pelo pavor de ter de cumprir a promessa que fez a Neptuno e que implica sacrificar o próprio filho."

O terceiro ato traz enfim desanuviamento e luz. Vem primeiro a famosa ária de Ilia, Zeffiretti, lusinghieri: "Aí, Ilia já é alguém em harmonia com o que a rodeia e em equilíbrio com a natureza. E a seguir, perante a iminência da partida de Idamante, ela enfim confessa-lhe que também o ama." Ana observa esta evolução como "um percurso muito bonito e inspirador" e, de novo, Mozart põe na música o íntimo de Ilia: "Essa ária nada tem que ver com a do primeiro ato. Tem uma melodia incrível e toda a linha e textura é de alguém que atingiu a plenitude e a harmonia."

E a consequência sobrevém no final, com a revelação plena do carácter de Ilia: "É algo que existe nela desde o início", considera Ana, "um lado heroico, corajoso e íntegro, que agora, após todas as provações que superou, ela pode explanar." E o que Ilia opera é nada menos do que "expor o absurdo do sacrifício de Idamante, aquele que é a esperança e a semente de transformação do reino; e a brutalidade de o pai matar assim o filho, algo que nem seres humanos nem deuses podem justificar". Discurso que é "um balde de lucidez naquele absurdo todo". A voz do mensageiro de Neptuno que logo se faz ouvir ratifica a posição de Ilia: "Ela é assim", segundo Ana, "a agente de uma nova ordem que ali nasce", fundada no amor, na justiça e na magnanimidade.

Globalmente, portanto, "um papel completo, com imensas possibilidades em termos de texto, dos recitativos, de contracena e de trabalho de ator".

Após o Idomeneo, Ana tem dois compromissos próximos em Lisboa: A Criação, de Haydn, no CCB (Dias da Música), e um concerto na Gulbenkian (maio). No verão, estará no Festival de Salzburgo para a Incoronazione di Poppea, de Monteverdi, sob a direção de William Christie.

Informação útil:
Idomeneo, de Mozart
Dir. musical: Christian Curnyn
Encenação: Yaron Lifschitz
Solistas, Coro São Carlos, Orquestra Sinfónica Portuguesa
Récitas: dias 10, 12, 14 e 16 (20.00) e dia 18 (16.00)
Bilhetes: 20 a 70 euros (estreia)/65 euros

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